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QUESTÕES
- Qual das afirmações abaixo é correta?
- A anemia falciforme é uma doença de transmissão autossômica dominante
- Trata-se de uma mutação no grupo heme
- A forma desoxigenada da hemoglobina S expõe um sítio hidrofóbico da molécula
- Crises dolorosas são eventos raros em portadores de anemia falciforme
- Quanto ao manuseio anestésico, assinale a alternativa incorreta:
- A reserva funcional de pacientes com anemia falciforme é diminuída, portanto evitar a hipoxemia é essencial
- A prática de transfusão de troca (exsanguineotransfusão) está associada a maior taxa de reações transfusionais sem que haja evidência de diminuição das exacerbações da anemia falciforme
- As complicações mais graves da anemia falciforme são crises aplásicas
- O período perioperatório está associado a maior morbidade e mortalidade
- Quando ao manuseio das complicações da anemia falciforme, assinale a alternativa correta:
- A incidência de tolerância a opióides é baixa
- A correção da anemia por transfusão sanguínea pode melhorar a oxigenação arterial na síndrome torácica aguda grave
- Analgesia controlada pelo paciente (PCA) não está indicada no controle das crises dolorosas
- A síndrome torácica aguda ocorre geralmente nas primeiras 24h do pós-operatório
INTRODUÇÃO
O processo de respiração celular envolve a ligação de hemoglobina (Hb) ao oxigênio nos capilares pulmonares para liberá-lo aos tecidos e, em sequência, a ligação do dióxido de carbono (CO2) resultante do metabolismo da célula para eliminação pelos capilares pulmonares. À medida que a Hb passa do estado desoxigenado para o estado oxigenado, CO2 e 2,3 difosfoglicerato (2,3 DPG) são expulsos da sua posição entre as cadeias β de globina para dar espaço ao oxigênio.
A substituição do aminoácido valina por glutamato na cadeia β da globina resulta em uma Hb mutante denominada HbS. A HbS, na forma desoxigenada, sofre uma mudança conformacional que expõe um sítio hidrofóbico da molécula. Em situações de desoxigenação extrema, os sítios hidrofóbicos das moléculas de HbS se agregam e formam polímeros, distorcendo e oxidando a membrana da hemácea. Isso prejudica a deformabilidade da hemácea ao passar por capilares e resulta em diminuição da sua meia-vida para 10 a 20 dias.1
Anemia falciforme é a doença hereditária recessiva resultante da homozigose para HbS. As manifestações clínicas mais comuns incluem anemia hemolítica grave e crises de dor aguda causadas por infartos locais em diversos órgãos e sistemas. Essas crises podem ser precipitadas por frio, desidratação, infecções, estresse, menstruação ou consumo de álcool, porém dificilmente a causa é determinada com clareza. Na medula óssea, infarto e inflamação ocasionam crises aplásicas com exacerbação da anemia, já que a hemólise continua sem eritropoese compensatória. Infartos recorrentes do baço geralmente culminam em perda funcional desse órgão até os 10 anos de idade, resultando em suscetibilidade para infecção por germes encapsulados como S.pneumoniae. Nos rins, há geralmente hematúria assintomática e perda progressiva da capacidade de concentração da urina, resultando em insuficiência renal. Os pulmões são lesados por inflamação crônica persistente, resultando em distúrbio restritivo, hipoxemia e hipertensão pulmonar. Complicações pulmonares e neurológicas são as principais causas de mortalidade. A síndrome torácica aguda assemelha-se a uma pneumonia, com infiltrado pulmonar associado a dor torácica, febre, taquipnéia, sibilância ou tosse. A complicação neurológica mais importante é o acidente vascular cerebral (AVC), mais frequente em crianças e adolescentes do que em adultos.2
MANUSEIO PERIOPERATÓRIO
O período perioperatório é associado a altas taxas de exacerbação da doença, até 19%, e mortalidade de até 1,1%.3 Desde a primeira revisão anestesiológica sobre o tema, sugere-se que evitar hipóxia e falcização seja um ponto-chave na prevenção de complicações. Estudos experimentais apontaram hipóxia, acidose e desidratação celular como desencadeadores de falcização. Uma extrapolação desses dados levou ao conceito de que depleção intravascular seja outro fator. A hipotermia também foi evidenciada como desencadeadora de falcização – apesar de o desvio da curva da Hb à esquerda limitar a desoxigenação, a vasoconstrição resultante da hipotermia aumenta o tempo de trânsito capilar a ponto de aumentar a taxa de falcização4.
Evidências empíricas
Historicamente, o manuseio anestésico de pacientes com anemia falciforme foi baseado em extrapolações do modelo fisiopatológico da doença. A hipótese principal era a de um “ciclo vicioso” de falcização de HbS desoxigenada, potenciado por hipóxia, acidose, hipotensão, estase venosa e vasoconstrição, levando a isquemia, infarto, mais hipóxia e mais falcização e assim sucessivamente. Porém, desde a década de 40, evidenciou-se que pacientes com anemia falciforme apresentam um grau de hipoxemia crônica de base e concluiu-se que a hipóxia em si não era uma causa de complicações agudas. Outros estudos experimentais induziram hipóxia em pacientes com traço falciforme e não conseguiram demonstrar aumento nas complicações agudas ou crônicas. Além disso, surgiram outras evidências de que esses pacientes são capazes de tolerar hipoxemia e falcização de maneira assintomática: pacientes com doença pulmonar da anemia falciforme vivem sob regime de hipoxemia crônica grave nas fases tardias da doença, crianças com cardiopatias cianóticas sobrevivem além da primeira infância e há relatos de uso de torniquetes sem aumento na taxa de complicações pósoperatórias.
Portanto, existem dados que contradizem a teoria do “ciclo vicioso” e sugerem que o aumento da falcização no período perioperatório não seja a causa das complicações da anemia falciforme.
Um modelo alternativo
Maior conhecimento sobre a função endotelial vascular e novas evidências de disfunção endotelial causada pela anemia falciforme deram origem a um modelo fisiopatológico alternativo, ainda em investigação.
De acordo com esse modelo, pacientes com anemia falciforme apresentam alterações vasculares patológicas primárias, provavelmente causadas por alterações moleculares da HbS. Descobriu-se que a forma oxigenada da HbS é altamente instável, o que leva à lise precoce das cadeias de globina e resulta em dano oxidativo à membrana celular. A disfunção da membrana celular, por sua vez, causa aumento da adesividade eritrocitária ao endotélio vascular, causando disfunção endotelial e alterando a homeostase da coagulação e a dinâmica do fluxo sanguíneo.
A descoberta de marcadores bioquímicos de inflamação endotelial na anemia falciforme levou à percepção da doença como uma disfunção inflamatória crônica do endotélio vascular. Identificou-se também que o heme livre resultante do metabolismo acelerado das hemáceas se liga avidamente ao óxido nítrico, o que contribui para o desequilíbrio da função endotelial.
Dessa maneira, o foco da atenção na anemia falciforme mudou das hemáceas para o endotélio vascular. Episódios de vasoclusão são provavelmente desencadeados por mudanças nos componentes celulares, plasmáticos e vasculares cronicamente alterados, e não por flutuações agudas na taxa de falcização. Assim, a falcização é provavelmente um evento secundário que exacerba a vasoclusão, e não o fator desencadeante.
Medidas anestésicas profiláticas
A existência de um novo modelo fisiopatológico significa que recomendações baseadas na falcização como evento primário devem ser reavaliadas quanto à sua eficácia e efeitos colaterais.
Evitar falcização
Evitar hipoxemia é a pedra angular do manuseio baseado na falcização.
Recomenda-se extrema cautela na administração de pré-medicação e na analgesia com opióides devido à preocupação quanto a depressão respiratória, hipóxia e falcização. Por outro lado, existe alta prevalência de tolerância a opióides nessa população devido aos episódios recorrentes de dor aguda. A administração de doses inadequadas de analgésicos potentes por preocupação excessiva com o potencial de falcização pode resultar em sofrimento desnecessário para os pacientes.
O uso de torniquetes para cirurgia ortopédica tem sido tradicionalmente contraindicado devido à hipóxia, acidose e estase venosa resultantes. Porém, relatos de uso de torniquetes sem aumento das complicações pós-operatórias sugerem que essa contraindicação não é absoluta.
Ainda que a importância da falcização tenha sido superestimada, anestesiologistas não devem ser permissivos com hipoxemia. Anemia falciforme pode resultar prejuízo na oferta de O2 devido a doença pulmonar, macro e microvasculopatia difusa, aumento da viscosidade sanguínea, anemia e disfunção da regulação vascular e do metabolismo do óxido nítrico. Portanto, esses pacientes tem reserva funcional limitada e não devem ser submetidos a reduções na oferta de O2. E ainda que a hipóxia não induza falcização diretamente, pode resultar em ativação endotelial e resposta inflamatória, possivelmente desencadeando uma complicação aguda da anemia falciforme.
Evitar acidose tissular
A cautela em relação à acidose é baseada em estudos in vitro que mostram aumento da falcização à medida que o pH diminui. Não se sabe a repercussão in vivo de distúrbios ácido-base. Por algum tempo, a alcalinização com bicarbonato foi uma prática comum, mas essa conduta foi suspensa quando não se evidenciou benefício.
Diluição intracelular da hemoglobina
A desidratação intracelular aumenta a concentração de hemoglobina e consequentemente a taxa de falcização. A partir desse conhecimento, postulou-se que a hipovolemia fosse também um fator desencadeante. Porém, não há estudos avaliando o efeito da hidratação agressiva desses pacientes no período perioperatório.
Diluição de células falcizadas
A transfusão pré-operatória de hemáceas continua sendo controversa. Se a falcização for um evento fisiopatológico central na sintomatologia da doença, a transfusão de hemáceas contendo HbA deveria reduzir a taxa de complicações. Porém, se as exacerbações forem resultado de lesão endotelial crônica, a justificativa para diluição aguda da HbS é menos convincente.
A comparação de transfusão de troca (para atingir a proporção de HbS a 30%) com transfusão simples para atingir um hematócrito de 30% evidenciou taxas semelhantes de exacerbações da doença, com maior prevalência de reações transfusionais nos pacientes submetidos a transfusão de troca.
Aloimunização
O desenvolvimento de anticorpos a antígenos não-ABO apresenta alta incidência em portadores de anemia falciforme. Reações transfusionais são associadas a AVC, crises dolorosas e insuficiência respiratória aguda. Portanto, portadores da doença devem sempre ser submetidos a provas cruzadas estendidas para antígenos Rhesus, Kell e Lewis e deve-se evitar transfusões quando possível, a não ser que haja indicação clara.
Hipotermia
Dados extrapolados de observações não-clínicas indicam que a hipotermia pode desencadear falcização, porém não há estudos clínicos demonstrando essa correlação. Os mecanismos não foram elucidados, mas vasoconstrição excessiva foi sugerida como fator contribuinte. Se a vasoconstrição for de fato um componente chave, a vasodilatação induzida pela anestesia pode ser um fator protetor. Contudo, em termos gerais, a manutenção da temperatura é um cuidado anestésico padrão que deve ser também aplicado aos pacientes com anemia falciforme.
Manuseio das complicações
Crises dolorosas
Episódios agudos recorrentes de dor, tipicamente em ossos longos, costelas, vértebras ou no abdome, são a característica principal da anemia falciforme. Postula-se que a dor óssea seja resultado de isquemia e infarto da medula ou córtex, enquanto a dor abdominal pode ser disfunção intestinal, infarto de órgãos intra-abdominais ou dor referida das costelas.
O manuseio das crises é baseado no local de desconforto e deve ser guiado por escalas analógicas de dor. Analgésicos orais podem ser suficientes para crises menores, enquanto opióides endovenosos como morfina, hidromorfona, petidina ou fentanil podem ser empregados no controle da dor intensa. Analgesia controlada pelo paciente (PCA) é a estratégia mais efetiva, porém deve-se ter cautela quanto à acumulação do metabólito epileptogênico da petidina (norpetidina), particularmente em pacientes com insuficiência renal.
Tolerância a opióides pode ser um problema significativo em alguns pacientes. Analgésicos como paracetamol e anti-inflamatórios não-esteroidais são poupadores de opióides e devem fazer parte do arsenal terapêutico. Metilprednisolona em altas doses pode reduzir a necessidade de opióides, presumivelmente pela redução de edema. Anestesia regional é uma opção altamente efetiva de controle da dor.
A hidratação agressiva e suplementação de O2 tem sido recomendadas, mas não têm eficácia comprovada. A transfusão sanguínea não está indicada na ausência de complicações. A síndrome torácica aguda pode ser uma consequência de crises dolorosas, seja por embolia gordurosa da medula infartada ou por hipoventilação resultante de dor abdominal ou no arcabouço costal. Portanto, analgesia adequada, mobilização precoce, espirometria de incentivo e monitorização respiratória frequente podem ser efetivas na prevenção desse evento adverso.
Síndrome torácica aguda (STA)
A STA é definida como infiltrado lobar novo à radiografia de tórax, incluindo atelectasia, acompanhada de febre > 38,5ºC, insuficiência respiratória ou dor torácica. A sua incidência após procedimentos cirúrgicos invasivos como cirurgias intra-abdominais ou artroplastias varia de 10 a 15%, geralmente após 2 a 3 dias. Assim como na crise dolorosa, analgesia adequada, espirometria de incentivo, fisioterapia e atenção à função respiratória podem ser importantes na prevenção de complicações pulmonares.
O tratamento da STA envolve O2 suplementar e suporte ventilatório condizente com o grau de insuficiência respiratória. Reatividade da via aérea está presente em até 50% dos pacientes com anemia falciforme; broncodilatadores devem ser utilizados se houver suspeita de broncoespasmo. Dexametasona endovenosa diminui a gravidade da STA em crianças e pode ter benefício na STA pósoperatória. Como pneumonia pode causar e complicar o quadro, antibióticos de amplo espectro devem ser instituídos se houver suspeita de infecção associada. A correção da anemia com transfusão melhora a oxigenação arterial quando a STA produz hipoxemia, principalmente em pacientes com anemia grave, trombocitopenia ou acometimento multilobar.
CONCLUSÕES
Abordagens orientadas à falcização como evento primário, como exsanguineotransfusões, resultam em efeitos adversos sem que haja benefício comprovado. A evolução do conhecimento evidenciou essa doença como um distúrbio inflamatório crônico do endotélio vascular, ao invés de simplesmente diminuição da solubilidade e agregação eritrocitária. Isso resultou em novas linhas de pesquisa sobre a prevenção de complicações da anemia falciforme.
Conclui-se então que os preceitos básicos do manuseio anestésico, como prevenção da hipoxemia, acidose, hipotermia devem continuar a ser respeitados. E que o novo entendimento da doença permite ao anestesiologista levar em consideração a lesão crônica e insidiosa de órgãos-alvo, principalmente nos rins, pulmões e cérebro, e compreender melhor o potencial para disfunção de órgãos no pósoperatório.
RESPOSTAS ÀS QUESTÕES
- C
A transmissão da anemia falciforme é autossômica recessiva, ou seja, é resultante de homozigose para o gene mutado. Pacientes heterozigotos apresentam as formas variantes e menos sintomáticas, como traço falciforme e doença falciforme-talassemia. Trata-se de uma mutação no gene que codifica as cadeias β de globina. Essa mutação faz com que a forma desoxigenada da hemoglobina mutante (HbS) exponha um sítio hidrofóbico da molécula, que faz com que haja agregação entre diversas moléculas de HbS. As crises dolorosas são a grande marca da anemia falciforme.
- C
As complicações da anemia falciforme que resultam em maior mortalidade são a síndrome torácica aguda e os eventos cerebrovasculares.
- B
Devido à recorrência de episódios de dor, portadores de anemia falciforme são frequentemente tolerantes a opióides. A analgesia controlada pelo paciente (PCA) é uma boa estratégia de controle da dor nas crises agudas. A síndrome torácica aguda pós-operatória é geralmente diagnosticada 2 a 3 dias após a cirurgia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- Hines RL, Marschall K. Stoelting’s Anesthesia and Coexisting Disease, 5th Elsevier. 2008.
- Goldman L, Ausiello D. Cecil Tratado de Medicina Interna, 22a Elsevier. 2005.
- Wilson H, Patterson RH, Diggs LW. Sickle cell anemia: a surgical problem. Ann Surg 1950; May 131 (5):641-51
- Firth PG. Anesthesia for peculiar cells – a century of sickle cell disease. Br J Anaesth. 2005 Sep;95(3):287-99.