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Tutorial 379

Anestesia para cirurgia citorredutora (CRS) com quimioterapia intraperitoneal hipertérmica (HIPEC)

Dra. Rosemarie Kearsley1, Dra. Sinead Egan2, Prof. Conan McCaul3

1Interna, Mater Misericordiae University Hospital, Dublin, Irlanda
2Interna, Mater Misericordiae University Hospital, Dublin, Irlanda
3Especialista supervisor em Anestesia, Mater Misericordiae University Hospital Ireland, University College Dublin, Dublin, Irlanda

Editado por: Drª Alison Jackson, Especialista em Anestesia, Waikato Hospital, Hamilton, Nova Zelândia

E-mail de contato: rosemariekearsley@gmail.com

Publicado dia 15 de maio de 2018.

PONTOS-CHAVE

  • A quimioterapia intraperitoneal hipertérmica (HIPEC) é uma infusão de agentes quimioterápicos aquecidos a 42-43⁰C na cavidade peritoneal.
  • Usualmente, a HIPEC é feita após cirurgia citorredutora (CRS) de grande porte.
  • Em certas malignidades, a HIPEC é associada com melhora de sobrevida mediana de 5 anos.
  • As grandes alterações fisiológicas intraoperatórias causadas pela temperatura e pelo deslocamento de líquidos representam um considerável desafio ao anestesista.
  • O uso de agentes quimioterápicos na sala de cirurgia envolve potenciais questões de segurança.
  • Após o procedimento, os pacientes devem ser bem monitorados devido à possibilidade de complicações pós-operatórias.

INTRODUÇÃO

A quimioterapia intraperitoneal hipertérmica (HIPEC), uma quimioterapia altamente concentrada e aquecida, é administrada diretamente no abdomen durante a cirurgia. A combinação de HIPEC com cirurgia citorredutora (CRS) é uma opção de tratamento multimodal eficaz em pacientes selecionados, com malignidades da superfície peritoneal. Antes, essas malignidades eram consideradas incuráveis e apenas passíveis de cuidados paliativos. A combinação de HIPEC com CRS melhora a sobrevida mediana e a sobrevida aos 5 anos nesses pacientes. A técnica consiste em infundir na cavidade peritoneal uma quimioterapia aquecida a 42-43⁰C após a ressecção macroscópica do tumor visível. O procedimento pode induzir alterações fisiológicas e potencialmente patológicas, com implicações para o cuidado perioperatório.

HISTÓRIA

O manejo de malignidades peritoneais vem evoluindo há décadas junto com o aperfeiçoamento da CRS, da HIPEC e das técnicas de cuidados perioperatórios (Tabela 1).

Tabela 1:

Tabela 1: Cronologia do desenvolvimento da cirurgia citorredutora (CRS) e da quimioterapia intraperitoneal hipertérmica (HIPEC).1

INDICAÇÕES CIRÚRGICAS

Apresentadas na Tabela 2.

SELEÇÃO DE PACIENTES

Uma seleção apropriada de pacientes para a citorredução completa completa é fundamental para alcançar um bom desfecho (Tabela 3). Uma boa saúde de base, sem doença cardiorrespiratória significante, e idade abaixo de 70 anos são condições ideais, mas não indispensáveis. Pacientes com indicação para CRS e HIPEC não devem apresentar progressão de doença durante a quimioterapia pré-operatória. Os sistemas de escores, tais como o índice de câncer peritoneal descrito por Sugarbaker e o mais recente escore de gravidade de doença de superfície peritoneal, são usados para avaliar o estágio da doença peritoneal e prognosticar o desfecho.4

AVALIAÇÃO PRÉ-OPERATÓRIA

A combinação CRS + HIPEC é um procedimento cirúrgico abdominal invasivo, com mais alterações térmicas intraoperatórias e deslocamentos de líquido do que ocorrem em operações abertas e laparoscópicas convencionais. Os efeitos fisiopatológicos associados com o procedimento podem levar à insuficiência de órgãos em alguns pacientes. Deve-se fazer uma avaliação pré-operatória detalhada em candidatos a este procedimento.

Tabela 2:

Tabela 2: Indicações cirúrgicas para cirurgia citorredutora (CRS) e quimioterapia intraperitoneal hipertérmica (HIPEC).2,3

Tabela 3:

Tabela 3: Critérios de seleção para cirurgia citorredutora (CRS) e quimioterapia intraperitoneal hipertérmica (HIPEC).

Figura 1:

Figura 1: Técnica aberta (em: Halkia et al, “Peritoneal carcinomatosis: intraoperative parameters in open (Coliseum) versus closed abdomen HIPEC”5; reproduzido com permissão).

O risco cardíaco nesses pacientes é semelhante ao de outros tipos de cirurgia abdominal de grande porte. Uma avaliação detalhada dos sistemas cardíaco e pulmonar é fundamental para estimar a capacidade de resposta às alterações fisiológicas sofridas no intraoperatório. Pode ser necessário realizar ecocardiografia e exames cardíacos dinâmicos, e deve-se solicitar hemogramas e estudos de coagulação e conhecer os níveis de eletrólitos, ureia e creatinina. É também importante verificar o estado nutricional e medir o nível pré-operatório de albumina. Uma estimativa da taxa de filtração glomerular facilita identificar pacientes com risco de lesão renal aguda associada com a HIPEC.3

TÉCNICAS CIRÚRGICAS

O procedimento é feito em 3 etapas:

  1. Exploração: pode-se começar com uma lapascopia exploratória para verificar se há progressão de doença ou pode-se proceder diretamente à cirurgia aberta do abdomen através de laparatomia mediana completa seguida de avaliação do câncer peritoneal.
  2. Citorredução/(debulking): Durante a fase de CRS (debulking), o cirurgião remove o tumor visível/macroscópico, podendo até envolver a remoção de algum órgão.
  3. Quimioperfusão: A cavidade abdominal é lavada com uma solução quimioterápica aquecida.

A CRS pode ser uma simples omentectomia isolada até a completa ressecção de múltiplos órgãos abdominais, inclusive do trato gastrointestinal, pâncreas, baço, partes do fígado, vesícula, ovários e útero. Também é comum fazer peritonectomia e isso pode estar associado com uma maior perda de sangue intraoperatória. A HIPEC pode ser feita de duas maneiras: as técnicas aberta (Coliseu) ou fechada.5

A técnica aberta (Figura 1) garante uma distribuição ideal de calor e solução citotóxica devido à manipulação manual dos conteúdos abdominais, mas a técnica pode ser comprometida por conta da perda de calor (sendo necessário um aumento da temperatura do líquido administrado, expondo o intestino ao risco de lesão por escaldamento) ou exposição sub-ideal da parede parietal anterior, bem como o risco de extravasamento de agentes citotóxicos.5,6

Com a técnica fechada (Figura 2), evita-se a perda de calor associada com a técnica aberta, o extravasamento é minimizado, e a penetração da droga aumenta, mas a distribuição do líquido perfundido pode não ficar homogênea.5,6 A duração da HIPEC depende do regime quimioterápico usado, mas pode ser de 30 min a 2 horas.

Figura 2:

Figura 2: Técnica fechada (Halkia et al.5 Reproduzido com permissão).

ALTERAÇÕES FISIOLÓGICAS DURANTE A HIPEC

Durante a HIPEC ocorrem muitas alterações fisiológicas multi-sistêmicas das quais o anestesista deve ter conhecimento.7

  • Cardiovascular: Aumento da frequência cardíaca e da pressão venosa central. Sem alterações significantes na pressão sanguínea.
  • Respiratório: Aumento das pressões de pico das vias aéreas. Redução da relação PaO2/FiO2. Aumento nos níveis de CO2 expirado.
  • Renal: Redução da perfusão renal. Acidose metabólica com aumento de lactato.
  • Coagulação: Coagulopatia associada à hipertermia com possível redução plaquetária e aumento do tempo de protrombina e do índice internacional normalizado (INR).

MANEJO INTRAOPERATÓRIO

Manejo de líquidos

O manejo de líquidos é importante, tanto na CRS como durante a infiltração da HIPEC. Pode haver uma perda substancial de sangue em CRS de grande porte, bem como perdas por evaporação relacionadas ao abdomen aberto. A HIPEC causa inflamação peritoneal, que por sua vez pode causar perdas perioperatórias para o terceiro-espaço.3,8,9 A monitorização do débito cardíaco, da variação da pressão do pulso e da produção de urina, além de testes feitos à beira do leito, podem ser úteis na monitorização do equilíbrio de líquidos e hemodinâmica. Os líquidos podem ser repostos com soluções cristalóides ou colóides ou sangue e plasma. A escolha entre cristalóide e colóide e entre regimes restritivo ou liberal é um assunto ainda muito debatido. Em geral, o anestesista deve estar ciente de um considerável deslocamento de líquidos e deve institutir um regime de líquidos que garanta a manutenção da perfusão sistêmica e regional.8,9

Manejo hemodinâmico

A manutenção da perfusão dos órgãos alvo é de grande importância. O aumento da temperatura corporal associado com o agente quimioterápico causa dilatação da vasculatura periférica. Isso resulta em aumento da frequência cardíaca para a manutenção do débito cardíaco. Durante a técnica fechada ocorre um aumento nas pressões das vias aéreas e na pressão venosa central por conta do aumento da pressão intra-abdominal. O enchimento do abdomen com soro e quimioterapia tem efeito similar ao de um pneumoperitôneo.3,9

A monitorização invasiva do débito cardíaco (p.ex. ecografia transesofágica ou catéter de Swan-Ganz) não é recomendada, mas uma monitorização padrão (p.ex. linha arterial, catéter venoso central e catéter urinário) pode ser útil para acompanhar o status hemodinâmico em tempo real.3 Contudo, deve-se lembrar que a pressão venosa central não é uma representação precisa do status pré-carga devido ao aumento da pressão intra-abdominal. O uso da variação do volume sistólico pode ajudar a orientar o status de líquido no intraoperatório.

Manejo de coagulação

Ao anestesiar o paciente para CRS e HIPEC, deve-se lembrar que o procedimento pode estar associado com níveis significantes de coagulopatia. Cerca de um terço dos pacientes apresenta algum tipo de coagulopatia e necessita de transfusão de produtos de plasma.3 Pode haver uma associação entre a gravidade da doença (índice de carcinomatose peritoneal) e o risco de apresentar coagulopatia.10

O paciente pode apresentar coagulopatia durante a CRS ou durante a HIPEC. Durante a CRS, pode haver uma grande perda de sangue, com necessidade de transfusão, o que pode aumentar o risco de coagulopatia devido à transfusão intraoperatória de hemácias. Durante a HIPEC, a coagulação pode ser comprometida devido à hipertermia, perda de proteínas, a entidade tumoral, ou toxicidade quimioterápica.3,9

A coagulopatia pode ser monitorada com exames laboratoriais (INR, APTT, PT) e com exames à beira do leito (tromboelastografia – TEG ou tromboelastometria rotacional – ROTEM). Há evidências de que o uso de ácido tranexâmico pode reduzir a necessidade de transfusão de hemácias durante a CRS.11 Lembrando que os desfechos de cirurgias oncológicas envolvendo transfusões de sangue podem estar associadas a morbidade aumentada, deve-se adotar uma política restritiva de transfusão.

Manejo de temperatura

A combinação de CRS com HIPEC pode estar associada com hipotermia e hipertermia. Durante a CRS, há risco de hipotermia devido à extensão do procedimento de desbridamento (debulking) e ao tamanho da área exposta pela cirurgia. A hipotermia aumenta o risco de perda de sangue e infecções da ferida cirúrgica, além de alterar a farmacocinética das drogas anestésicas de uso comum.

Deve-se prevenir a hipotermia usando líquidos aquecidos, aquecedores de ar forçado e cobertores de aquecimento, além de monitorar a temperatura do paciente e da sala de modo a manter o paciente normotérmico.3 Antes do início da quimioterapia intraperitoneal e como preparação para esta, pode-se iniciar a hipotermia controlada com líquidos intravenosos frios e reduzir a temperatura da sala, a qual pode induzir hipertermia.8 A solução de perfusão da HIPEC é aquecida a 42-43⁰C. A temperatura do corpo pode atingir 40.5⁰C. Essa hipertermia aumenta a demanda sistêmica de oxigênio e pode aumentar a demanda metabólica, com crescentes níveis de CO2 expirado e acidose metabólica concomitante. A hipertermia também expõe o paciente ao risco de coagulopatias, disfunção renal e hepática, neuropatias e convulsões. Durante a HIPEC pode-se também regular a temperatura com cobertores de esfriamento, compressas frias na cabeça e blocos de esfriamento.

O PAPEL DA ANESTESIA REGIONAL

O manejo da dor intra e pós-operatória pode ser feito com anestesia epidural. Uma epidural eficaz reduz a necessidade de opióides no intra e pós-operatório. A HIPEC é um procedimento doloroso, com escores de dor semelhantes a (ou maiores que) os escores associados com toracotomia. Se, como usualmente acontece, o paciente tiver um regime analgésico complexo já estabelecido, uma analgesia epidural, idealmente controlada pelo paciente, pode ser um bom adjunto.12 Além da diminuição da necessidade de assistência à ventilação no pós-operatório, o uso reduzido de opióides associado com anestesia epidural também reduz a incidência de disfunção intestinal e atonia.

CONSIDERAÇÕES QUIMIOTERÁPICAS

A administração da quimioterapia na cavidade peritoneal permite o emprego de doses acima do que seria tolerado sistemicamente. O aquecimento do agente aumenta a permeabilidade celular e a atividade metabólica e, consequentemente, o efeito tumoricida.

O anestesista deve estar ciente dos efeitos adversos associados com o uso de agentes quimioterápicos. Além das reações alérgicas comuns (vermelhidão, náusea, vômito), deve-se dar atenção aos efeitos cardiotóxicos diretos causados por esses agentes. Por exemplo, a cisplatina é associada com prolongamento do intervalo QT e há relatos de casos de taquicardia ventricular sem pulso. É também importante considerar a nefrotoxicidade da cisplatina e a necessidade de prevenir lesão renal. Outros agentes usados, tais como a mitomicina C e a doxorubicina, são associados com mielotoxicidade e neurotoxicidade.3,9

SEGURANÇA NA SALA DE CIRURGIA

O crescente uso de quimioterápicos na sala de cirurgia pode representar um risco para os profissionais de saúde, os quais podem ser expostos por diversas vias: contaminação do ar e absorção pulmonar, contaminação por contato direto, manipulação do perfusato e manipulação de objetos e tecidos expostos. Deve ser lembrado que líquidos corporais expostos são considerados contaminados pelos quimioterápicos por 48 horas. Na técnica aberta, a cavidade é coberta por uma folha de plástico para minimizar a exposição, e usa-se um evacuador de fumaça debaixo dos campos para minimizar a contaminação por vapor. Teoricamente, a técnica fechada oferece mais proteção aos profissionais de saúde.

Para minimizar o risco, é importante que os profissionais que preparam e aplicam quimioterápicos na sala de cirurgia seja bem treinados. A sua saúde pode ser monitorada com exames de sangue de rotina e vigilância para efeitos adversos.13

Monitoramentos biológicos e do ar mostram que o uso de quimioterapia intraperitoneal é seguro para os pacientes e para os profissionais de saúde se forem respeitados os protocolos de segurança e de manejo quimioterápico. Esses protocolos incluem recomendações para a preparação da sala de cirurgia, a seleção de profissionais, o uso de equipamento de proteção pessoal, o manejo dos agentes quimioterápicos por pessoas qualificadas, e a prevenção de extravasamento.

Todos as pessoas na sala devem usar equipamento de proteção pessoal (máscaras, luvas, batas e protetores de calçado), do começo ao fim do procedimento. A máscara cirúrgica simples não oferece proteção adequada. Deve-se usar máscaras com filtros, trocadas a cada 2 horas. É recomendável usar luva dupla e trocar a cada 30 min. A luva dupla oferece bastante proteção porque uma camada de ar constitui uma barreira eficaz. Também deve-se usar óculos de proteção para evitar respingos nos olhos.11

A qualidade do ar deve ser controlada com boa ventilação e um evacuador de fumaça. O ar condicionado deve ficar ligado do começo ao fim da cirurgia. Os filtros do ar condicionado devem ser do tipo HEPA (alta eficiência na separação de partículas). As portas devem ter gaxetas bem justas, e deve-se afixar um aviso do lado de fora informando que quimioterápicos estão sendo usados.

CUIDADOS NO PÓS-OPERATÓRIO

Após o procedimento, os pacientes devem receber cuidados críticos em uma UTI ou uma unidade de alta dependência de cuidados, conforme a disponibilidade, para monitorar alterações fisiológicas e manejar complicações da cirurgia ou dos distúrbios fisiológicos e corrigir a coagulopatia, se houver.14 É importante fazer uma avaliação e monitorização cuidadosa do equilíbrio de líquidos porque pode ocorrer vasodilatação após a HIPEC. Nesse caso, pode haver necessidade de vasopressores e, se o paciente não for responsivo a líquidos, deve-se evitar fazer reanimação com líquidos em grande volume.

Recomenda-se começar cedo a alimentação enteral porque a nutrição facilita a cicatrização e o trânsito intestinal.9

COMPLICAÇÕES

Como acontece em toda cirurgia abdominal de porte, há risco de complicações pós-cirúrgicas, p.ex. perfuração intestinal, vazamento anastomótico, vazamento de bilis, formação de fístulas, sangramento, infecções e tromboembolismo venoso. A cirurgia abdominal com HIPEC também pode causar íleo pós-cirúrgico.

A quimioterapia pode também ter complicações (p.ex. leucopenia transitória e alterações de transaminases), com possível impacto sobre as complicações pós-cirúrgicas.

RESUMO

Ao anestesiar pacientes submetidos a HIPEC, é necessário saber lidar com translocação de líquidos, alterações de temperatura e aumentos na pressão intra-abdominal e na taxa metabólica. É de grande importância dar atenção ao manejo de líquidos e à monitorização hemodinâmica perioperatória. O uso de anestesia regional (epidural) ajuda a conduzir o tratamento da dor, lembrando que há risco de coagulopatia, que pode ser testada à beira do leito. O anestesista deve também ter conhecimento sobre a conduta e segurança quimioterápica e sobre os efeitos adversos de cada um dos agentes. Após o procedimento, o paciente deve ser monitorado em um ambiente de cuidados intensivos.

REFERÊNCIAS

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