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INTRODUÇAO
Sistemas humanos ou tecnológicos podem ser classificados conforme duas dimensões: interação e acoplamento. A interação entre os elementos de um sistema é dita linear quando ocorre ordenadamente, em uma sequência fixa de eventos. Quando a execução de uma tarefa inclui múltiplas sub-‐tarefas que podem ser realizadas em diversos momentos ao longo do processo, diz-‐se que é um sistema complexo. Acoplamento é a intensidade da correlação de uma ação com as suas consequências. Assim, acoplamento estreito ocorre quando ações guardam relação estreita com suas consequências. Em sistemas estreitamente acoplados, pequenos erros podem resultar rapidamente em acidentes. Sistemas frouxamente acoplados são aqueles em que a relação entre ações e consequências é menos evidente, portanto esse tipo de sistema tende a ser mais tolerante a erros.
O corpo humano é um sistema altamente complexo, composto de sub-‐sistemas frouxamente e estreitamente acoplados. Contudo, a anestesia inibe mecanismos autorreguladores e a cirurgia acrescenta complexidade, o que transforma o ato anestésico em um sistema complexo e estreitamente acoplado.
Esse tipo de sistema, mesmo quando bem conduzido, é altamente propenso a acidentes. A análise dessa característica gerou o conceito proposto por Perrow de “acidentes normais” inevitáveis, uma vez que falhas em múltiplos componentes do sistema podem se combinar e resultar em acidentes. Portanto, a anestesiologia, por sua natureza, envolve crises. Estima-‐se que 20% das anestesias envolvam um evento problemático que requer intervenção do anestesiologista e 5% envolvam eventos potencialmente catastróficos.
O conceito de Gerenciamento de Recursos em Crises em Anestesiologia foi desenvolvido por David Gaba nos anos 90 a partir de uma adaptação de Crew Resource Management (CRM), treinamento para equipes de cabine de aviação especialmente voltado aos aspectos cognitivos e comportamentais da tomada de decisão em um ambiente complexo, dinâmico, sob pressão de tempo e as relações interpessoais nesse contexto.
COMO SURGE UMA CRISE?
Crises são geralmente percebidas como eventos súbitos, rápidos e surpreendentes em seu desenvolvimento. Porém, uma análise retrospectiva normalmente permite identificar os passos da evolução que permitiram que culminasse em uma situação crítica.
Eventos provocadores específicos iniciam um problema, uma alteração que requer a atenção do anestesiologista mas provavelmente não causará, por si só, dano ao paciente. Um problema pode ser limitado em si próprio, aumentar progressivamente em gravidade, provocar novos problemas ou distrair a atenção do anestesiologista para outro problema mais grave.
Problemas não auto-limitados se tornam incidentes, situações que não se resolverão sozinhas e provavelmente continuarão evoluindo até se tornarem incidentes críticos, que podem diretamente causar dano ao paciente.
Problema Incidente Incidente Crítico Consequência adversa
A pedra angular do controle de crises é a detecção e correção desses eventos antes que resultem em consequências adversas, mas ainda que ocorra lesão ao paciente, o anestesiologista deve gerenciar a crise para minimizar o dano.
A origem de um problema
Problemas surgem a partir de três conjuntos de eventos provocadores:
Erros latentes
Erros que permanecem escondidos, latentes, no sistema por um longo tempo, até que a sua combinação com outros fatores resulte em um problema. Exemplos possíveis são um desfibrilador que não funciona quando necessitado por estar sem bateria, a falta de medicações essenciais porém pouco utilizadas, como dantrolene frente a um caso de hipertermia maligna, interface pouco intuitiva da máquina de anestesia que dificulta a ativação do ventilador mecânico.
Fatores externos
Enquanto na aviação, os fatores externos mais importantes são as condições climáticas, em anestesiologia eles são as doenças de base do paciente e a natureza da cirurgia.
Fatores psicológicos
Os fatores psicológicos incluem fadiga, sono, aborrecimentos, doenças, uso de substâncias químicas e fatores ambientais como barulho e iluminação. Está bem documentada na literatura a influência negativa desses fatores sobre a performance de anestesiologistas.
A TOMADA DE DECISAO DINAMICA
A tomada de decisão exige que o anestesiologista opere em múltiplos níveis de atividade mental: no nível sensormotor, atividades que envolvem percepção sensorial ou ações motoras ocupam controle consciente mínimo. No quesito procedimento, o anestesista realiza uma série de atividades rotineiras desenvolvidas a partir de casos prévios. O raciocínio abstrato é usado em situações novas para as quais nenhuma rotina prévia foi desenvolvida. O controle supervisor gerencia a atenção do anestesiologista e decide para onde direcioná-la prioritariamente a cada momento. E o controle de recursos ocorre no nível mais alto de atividade mental, gerenciando todos os recursos existentes.
Observação
Assim como pilotos de avião, anestesistas devem desenvolver um padrão contínuo de varredura que inclua a observação clínica do paciente, a atenção a diversos monitores, inspeção visual do campo cirúrgico, do frasco coletor de aspiração, as atividades e comentários técnicos da equipe cirúrgica, sons normais e anormais do paciente e equipamento e resultados de exames. Essas informações não devem ser somente observadas: devem ser interpretadas completamente, ao mesmo tempo em que se consegue realizar outras tarefas, capacidade conhecida como conhecimento da situação (situational awareness).
Verificação
Informações numa sala cirúrgica nem sempre são confiáveis. Muitos instrumentos fornecem dados indiretos e são propensos a artefatos (dados falsos). Outra ocorrência possível são transitórios breves, dados verdadeiros porém que se corrigirão por si próprios e não requerem ação precipitada. Métodos possíveis de verificação incluem:
- Repetir a medida ou observar a tendência de curto prazo
- Utilizar um canal redundante (por exemplo, pressão arterial não invasiva e invasiva)
- Correlação de múltiplos indicadores (por exemplo, pressão arterial, capnografia, débito cardíaco não invasivo)
- Ativação de uma nova modalidade de monitorização (por exemplo, cateter de artéria pulmonar)
- Recalibração ou teste da função de um equipamento
- Substituição do equipamento
- Solicitação de uma segunda opinião
Reconhecimento do problema
Após observar dados e verificá-los, deve-se decidir se eles indicam que o andamento do caso está no caminho certo ou se há um problema. A tomada de decisão clássica envolve a comparação dos dados encontrados com padrões conhecidos de problemas específicos. Na maioria das vezes, devido ao grau de incerteza em anestesiologia, não será possível fazer uma comparação exata. A partir daí, pode-se lançar mão de heurísticos, abordagens sindrômicas que são típicas de anestesistas peritos e resultam em economia de tempo na situação crítica. Outra estratégia possível é o jogo de frequência, que consiste em simplesmente escolher a causa mais frequente e decidir se ela explica os dados observados ou não.
Predição de estados futuros
Os problemas presentes devem ser interpretados quanto à sua influência sobre o estado futuro do paciente. Essa abordagem envolve a priorização de problemas mais graves e o planejamento da ação.
Respostas pré-compiladas
A tomada de decisão clássica através do raciocínio dedutivo formal é um processo lento e não funciona bem no ambiente dinâmico e ambíguo da crise. Anestesistas peritos buscam suas respostas iniciais em mapas mentais de regras pré-compiladas para o manuseio de eventos específicos. Durante o planejamento da anestesia, o perito relembra e reorganiza mentalmente os mapas mentais de problemas a serem enfrentados de acordo com as comorbidades do paciente e a natureza da cirurgia.
Mesmo mapas mentais otimizados falharão quando a etiologia do evento não for a suspeitada ou não houver resposta às ações implementadas. Anestesistas peritos usam mapas mentais para sua resposta inicial, enquanto combinam raciocínio médico abstrato ao longo do desenvolvimento do caso.
Coordenação das atividades (controle supervisor)
A atenção do anestesiologista é um recurso escasso que deve ser dividido entre muitas funções cognitivas, tarefas e problemas. Em determinados períodos durante o ato anestésico, essa sobrecarga de trabalho mental pode degradar a capacidade de vigilância do anestesista. A capacidade de modular o próprio pensamento (metacognição) envolve controle ativo sobre a carga de trabalho. As estratégias para isso incluem:
- Distribuição da carga de trabalho em horas suplementares: o perito se prepara para tarefas futuras quando a carga de trabalho é baixa e adia ou delega tarefas de baixa prioridade quando a carga de trabalho é alta
- Distribuição da carga de trabalho que excede os recursos: o anestesiologista não pode simultaneamente ventilar o paciente manualmente e fazer uma punção venosa, portanto uma das tarefas deverá ser delegada
- Modificação da natureza da tarefa: flexibilização da ordem de tarefas não-‐prioritárias em situações de alta carga de trabalho (por exemplo, adiar o preenchimento da ficha de registro da anestesia)
Além disso, o controle supervisor planeja as ações e esquematiza a sua execução:
- Pré-‐condições para o andamento das ações (por exemplo, é impossível medir o débito cardíaco por termodiluição se um cateter de artéria pulmonar não tiver sido inserido)
- Constrangimentos (por exemplo, verificar as pupilas de paciente cuja cabeça está completamente envolvida no campo cirúrgico)
- Efeitos colaterais das ações
- Rapidez e facilidade na execução das ações
- Certeza do sucesso das ações
- Reversibilidade das ações e o risco caso sejam erradas
- Custo das ações em termos de atenção e recursos
Implementação da ação
Erros de execução de tarefas incluem:
- Erro de captura: uma ação comum substitui uma ação planejada (por exemplo, “força do hábito”)
- Erro de descrição: ação correta com o objetivo errado (mover rapidamente a chave errada)
- Erro de memória: esquecer um item numa sequência
- Erro de sequência: trocar a sequência de ação
- Erro de modo: ações corretas para um modo de operação mas erradas em outro modo
Reavaliação
O diagnóstico inicial e as ações implementadas devem ser continuamente revisados. Somente através da reavaliação frequente o anestesista pode se adaptar às mudanças dinâmicas na situação. A atualização contínua do controle da situação faz parte da capacidade de conhecimento da situação (situational awareness).
- As ações tiveram algum efeito?
- O problema está melhorando ou piorando?
- Existe algum efeito colateral de ações prévias?
- Existe algum problema novo que não foi visto antes?
- O diagnóstico inicial estava correto?
Erros de fixação
Reavaliação insuficiente, má adaptação do plano e perda de conhecimento da situação podem resultar em erros de fixação, em que o profissional se apega a uma linha de raciocínio e perde a capacidade de dar um passo atrás para reavaliá-la.
- “Isto e somente isto”: negligência em revisar um diagnóstico apesar da evidência clara em contrário, o anestesista procura adaptar a evidência encontrada para adequá-la ao diagnóstico inicial e foca a sua atenção em aspecto menor de um problema maior.
- “Tudo menos isto”: relutância em submeter um problema maior ao tratamento definitivo
- “Está tudo ok”: negligência persistente em aceitar que um problema está ocorrendo
Controle de recursos
Trata-se da habilidade do anestesista em gerenciar todos os recursos à sua disposição para o efetivo controle de uma crise, para traduzir o conhecimento do que precisa ser feito na ação propriamente dita. Saber realizar todas as tarefas individualmente não é suficiente, já que em situações de crise a carga de trabalho é alta e o anestesista não terá recursos para assumi-la sozinho. Assim, o controle de recursos se divide em:
- Priorização de tarefas
- Distribuição de tarefas
- Comunicação
- Mobilização e uso de todos os recursos disponíveis
- Monitorização e verificação cruzada dos dados disponíveis
REFERENCIAS
- Gaba DM, Fish KJ, Howard SK. Situações críticas em anestesiologia. Ed. Revinter, 1998.
- Webster BS. The challenges of technological intensification, http://www.apsf.org/newsletters/html/2009/fall/01_techintens.htm acessado em 19/01/2014
- Perrow C. Normal accidents—living with high risk technologies. New York: Basic Books, 1984.
- Gaba DM, Maxwell M, DeAnda A. Anesthetic mishaps: breaking the chain of accident evolution. 1987 May;66(5):670-6.
- Gaba DM. Human error in anesthetic mishaps. Int Anesthesiol Clin. 1989 Fall;27(3):137-47.