Intensive Care Medicine
PONTOS CHAVE
- A síndrome da infusão de propofol é rara, mas potencialmente letal; descrita pela primeira vez na população pediátrica e depois relatada no intensivismo de adultos, principalmente em neurointensivismo.
- Bradicardia refratária, acidose metabólica sem causa definida, alterações no eletrocardiograma e rabdomiólise são características consistentes.
- Não há teste diagnóstico; portanto, é necessário um alto nível de suspeita para detecção precoce.
- A fisiopatologia não é claramente compreendida, mas lembra doenças
- O cerne do manejo são prevenção e detecção precoce.
- O tratamento após diagnóstico estabelecido é de suporte.
INTRODUÇÃO
Propofol é um agente anestésico intravenoso não barbiturato que foi aprovado para uso em 1989. Como acontece com muitos agentes anestésicos gerais, produz seus efeitos hipnóticos ao potencializar os efeitos do neurotransmissor inibidor ácido gama-aminobutírico (GABA).
É uma droga importante que é amplamente utilizada em todo o mundo. Atualmente está na “Lista Modelo de Medicamentos Essenciais” da Organização Mundial da Saúde (OMS), que lista o que a OMS considera ser os medicamentos mais eficazes e seguros necessários para atender às necessidades de um sistema de saúde.1
Propofol é amplamente utilizado para a indução e manutenção da anestesia geral, e também possui muitas propriedades que favorecem seu uso como agente sedativo em pacientes graves. Note-se que 70% do uso de propofol em todo o mundo é para sedação. Essas propriedades incluem o seguinte:
- início e interrupção de ação rápidos;
- propriedades sedativas, ansiolíticas, antieméticas e anticonvulsionantes; e
- propriedades anti-inflamatórias e antioxidantes benéficas.
Possui um excelente perfil de segurança, entretanto é reconhecida uma complicação rara e potencialmente fatal chamada síndrome da infusão de propofol (PRIS).
O primeiro caso relatado dessa síndrome ocorreu em 1990, em uma criança de 3 anos na Dinamarca. Dois anos depois, uma série de casos foi publicada no British Medical Journal, descrevendo apresentações semelhantes em 5 crianças pequenas.2 Um estudo da Food and Drug Administration dos Estados Unidos naquele ano não conseguiu encontrar uma ligação entre propofol e mortes adicionais, mas o uso de propofol para sedação pediátrica foi abandonado pouco depois, explicando em parte porquê a literatura subsequente se refere principalmente a pacientes adultos.
Apresentações semelhantes em adultos começaram a ser relatadas durante o final da década de 90, começando em 1996 com o caso de uma mulher de 30 anos internada com exacerbação de asma e que recebeu sedação e ventilação invasiva.
O objetivo deste tutorial é resumir os aspectos clínicos, fisiopatologia e manejo desta situação.
DEFINIÇÃO
O termo síndrome da infusão de propofol (PRIS) foi cunhado pela primeira vez por Bray em 1998, em um artigo que visava definir algumas das características clínicas comuns dos casos em que crianças sofreram consequências adversas associadas, embora não comprovadamente causadas por infusões de propofol em dose alta e longo prazo (>48 horas).3
Embora não tenha havido uma definição universalmente aceita de PRIS, uma definição inicial foi a seguinte:
.. . ocorrência de bradicardia refratária aguda, progredindo para assistolia, associada à infusão de propofol, na presença de uma ou mais das seguintes: acidose metabólica, rabdomiólise ou mioglobinúria, lipemia ou fígado aumentado ou esteatose hepática.4
Sentiu-se que a descrição incluindo bradicardia refratária que leva à assistolia nesta frase acima limitava o valor prático. Assim, uma definição alternativa foi recentemente descrita, com base em características primárias (aquelas que podem ser a única manifestação da PRIS) e características secundárias (aquelas que ocorrem em combinação com outras características).5 Esta última definição é a seguinte e as características estão detalhadas na Tabela:
…a síndrome da infusão de propofol ocorre em pacientes gravemente doentes que recebem infusões de propofol tipicamente em altas doses (>5mg/kg/h) ou por tempo prolongado (>48 hrs), e é caracterizada por um ou mais dos seguintes: acidose metabólica sem causa conhecida, rabdomiólise ou alterações no ECG com ou sem lesão renal aguda (IRA), hipercalemia, lipidemia, insuficiência cardíaca, febre, enzimas hepáticas elevadas ou lactato elevado.5
CARACTERÍSTICAS CLÍNICAS
Hemphill et al,5 como descrito acima, classificaram as características clínicas em primárias (características típicas e consistentes com PRIS que podem ser a única característica de apresentação) e secundárias (aquelas que ocorrem em combinação com outras características):
As características primárias incluem alterações no eletrocardiograma (ECG) caracteristicamente descritas como um “padrão côncavo” de elevação de ST em V1-V3 como na síndrome de Brugada; no entanto, elas também podem incluir qualquer forma de taquicardia ventricular ou supraventricular, bloqueio de ramo, ou bradicardia. Além disso, nova manifestação grave de acidose metabólica (uma acidose metabólica com grande intervalo de ânions) é com frequência agravada por disfunção renal e lactato sérico elevado. A terceira característica primária é a rabdomiólise, que muitas vezes se torna um fator causal no desenvolvimento de lesão renal aguda.
INCIDÊNCIA
A ausência de uma definição universal para PRIS levou à variabilidade na incidência relatada. No entanto, um estudo americano multicêntrico em UTI de adultos descreveu uma incidência de 1,1%, o que significaria que uma UTI média poderia muito bem ver um punhado de casos por ano.6
Tabela. Características clínicas de PRIS conforme a classificação de Hemphill5
FATORES DE RISCO
Dose Cumulativa
Há evidências suficientes que sugerem uma relação linear entre a dose cumulativa de propofol e a quantidade e gravidade das características. Embora a definição dada acima mencione doses altas (>5 mg/kg/h) ou longa duração de administração (>48 horas), houve muitos casos relatados em doses acumuladas mais baixas.
Obesidade
Estudos farmacocinéticos sugerem que a dosagem para propofol deve ser baseada no peso da massa magra do paciente e não no peso corporal real. (Os modelos de infusão alvo-controlada não são validados formalmente nos obesos e utilizam diferentes valores de peso em seus cálculos).
Embora não tenha sido estabelecida uma relação clara entre obesidade e o desenvolvimento de PRIS, a dose para sedação deve ser calculada com base no peso da massa magra. Casos foram relatados em que a administração de propofol com base no peso corporal real foi associada a PRIS e pode ter sido exacerbada pela ‘overdose relativa’ de propofol.
Corticosteroides
Corticóides são conhecidos por contribuírem para o desenvolvimento de uma forma grave de miopatia, possivelmente ativando enzimas que causam danos musculares diretos. A rabdomiólise vista na PRIS pode ocorrer como resultado de um mecanismo semelhante, e há certamente uma ligação entre a córtico-terapia e o desenvolvimento de PRIS.
Catecolaminas
Há uma ligação entre o uso de vasopressores e o desenvolvimento de PRIS.7 Acredita-se que o clearance de propofol seja aumentado pelos níveis elevados de catecolaminas endógenas vistos nos pacientes com traumatismo crânio-encefálico ou com circulação hiperdinâmica no contexto de sepse ou síndrome de resposta inflamatória sistêmica. Acredita-se também que isso ocorra com a administração de doses mais altas de inotrópicos ou vasopressores. O clearance aumentado pode reduzir o efeito terapêutico do propofol, levando à necessidade de aumentar a dose administrada. Se este é um efeito causal não está claro; acidose devido a PRIS pode prejudicar o tônus vasomotor, levando a um aumento da demanda de vasopressor.
Doença grave
A resposta neuroendócrina ao estresse da doença grave causa um aumento de catecolaminas e glicocorticoides, que estão implicados como fatores de risco para PRIS. Esses hormônios modulam a atividade das enzimas lipase, promovendo o desdobramento de triglicerídeos em glicerol e ácidos graxos livres (FFAs). Além disso, em doenças graves, há um desvio de carboidratos para substratos à base de lipídios para produção de energia, o que também aumenta os FFAs. Isso é importante, já que os FFAs são um substrato-chave para parte do mecanismo fisiopatológico da PRIS (ver abaixo).
Sobrecarga lipídica
É possível os pacientes desenvolverem uma sobrecarga lipídica relativa associada à nutrição parenteral, infusões de propofol, ou ambos.4 Isso leva a um acúmulo de FFAs não utilizados. Deve haver uma fonte adequada de carboidratos para equilibrar isso e suprimir a lipólise excessiva, talvez na forma de infusão de dextrose. Esta pode ser uma das razões pelas quais as crianças, com suas reservas de glicogênio relativamente limitadas, exibem maior suscetibilidade a PRIS.
FISIOPATOLOGIA
O mecanismo subjacente exato da PRIS não é totalmente compreendido. Sabemos que propofol desacopla a fosforilação oxidativa e produção de energia nas mitocôndrias, bem como inibe a transferência de elétrons na cadeia de transporte de elétrons dos miócitos, levando a um desarranjo na produção de ATP, hipoxia celular e acidose. A maioria das evidências existentes aponta para isso como a via mais provável para a etiologia de PRIS.
Os FFAs, que são um combustível essencial para esses miócitos durante o “estresse”, não podem ser utilizadas quando a fosforilação oxidativa está desacoplada. Eles podem se acumular e agir como uma substância pró-arritmogênica, contribuindo para a disfunção cardíaca na PRIS.8
Propofol também antagoniza os receptores beta-adrenérgicos e a ligação dos canais do cálcio, deprimindo ainda mais a função cardíaca e causando um grau de resistência aos agentes inotrópicos.
Também foi sugerido que a fisiopatologia lembra certas doenças mitocondriais, como a deficiência de acil-coenzima desidrogenase de cadeia média, sugerindo que possa existir uma predisposição genética à PRIS.
Finalmente, o efeito desacoplador sobre a cadeia respiratória e o desequilíbrio resultante entre a demanda e a utilização de energia causam o acúmulo de lactato e necrose dos miócitos. Isto leva à acidose metabólica, disfunção cardíaca e rabdomiólise.
PREVENÇÃO
Sabe-se que o risco de PRIS aumenta com a dosagem de propofol, em termos de velocidade e duração da infusão. A literatura existente recomenda velocidades de infusão inferiores a 5 mg/kg/h, embora a maioria dos fabricantes realmente recomende uma taxa máxima de infusão menor que 4 mg/kg/h.9
Embora faça sentido seguir essa recomendação, vale ressaltar que casos de PRIS têm sido descritos após apenas algumas horas de propofol ou em velocidades de infusão muito menores do que estas.10
A coadministração de outros agentes como opioides, ou o uso de agentes adicionais/alternativos se a necessidade de sedação for alta, é outra forma de controlar a dose de propofol administrada. Se forem necessárias altas doses, é imprescindível o monitoramento constante do pH, lactato e creatinina quinase (CK).
O propofol deve ser evitado em pacientes com doenças mitocondriais comprovadas ou suspeitas, devido à semelhança na fisiopatologia de ambos os quadros.
Dado o papel dos FFAs no PRIS, também é prudente garantir administração contínua de carboidratos aos pacientes que recebem infusão de propofol para sedação.
MANEJO
A falta de uma definição clara e a presença inevitável e confundidora de disfunção de órgãos em pacientes gravemente doentes significa que não há diretrizes estabelecidas para o tratamento de PRIS.
A situação é difícil de tratar, e é fundamental a conscientização quanto à sua existência e aos fatores de risco para seu desenvolvimento, juntamente com um alto índice de suspeita de sinais em pacientes em risco. Algumas instituições monitoram os níveis de CK diariamente após 48 horas de infusão de propofol.8
Uma vez diagnosticada, as prioridades são:
- interromper a administração de propofol e iniciar outra alternativa de sedação,
- terapia de suporte para tratar as complicações de PRIS e
- eliminação do propofol do organismo.
Pode ser necessário suporte cardiovascular na forma de agentes inotrópicos e/ou vasopressores. As arritmias são tratadas de acordo com algoritmos padrão de tratamento. Há relatos de choque cardíaco resistente à catecolamina, possivelmente como consequência do efeito bloqueador do propofol sobre os canais de cálcio. O uso de suporte com ECMO tem sido relatado nesses casos, enquanto estimulação elétrica com marcapasso tem sido de uso limitado, possivelmente devido à natureza direta dos danos aos miócitos.
A acidose metabólica deve ser tratada, pois pode propagar arritmias ou reduzir seu tratamento efetivo, bem como potencialmente diminuir os efeitos dos agentes vasoativos. Isso é feito garantindo uma ventilação minuciosa adequada, volume intravascular adequado e a consideração precoce de hemofiltração contínua.
A hemofiltração também tem um papel na eliminação do propofol do organismo. Propofol é metabolizado no fígado a derivados de fenol hidrossolúveis, que são então excretados na urina. A hemofiltração não consegue eliminar o propofol, extremamente lipofílico, mas pode eliminar os metabólitos hidrossolúveis, bem como ajudar a manejar a acidose e hipercalemia, que podem ser causadas por disfunção cardíaca ou rabdomiólise.
Há evidências limitadas que sugerem um papel para o bicarbonato que não seja uma medida contemporizadora para hipercalemia na presença de acidose metabólica. Fluidoterapia adequada é necessária para tratar a mioglobinuria.
RESUMO
Propofol possui propriedades farmacocinéticas que o tornam uma boa escolha para sedação em pacientes graves, no entanto seu uso está associado à incidência de PRIS. PRIS pode apresentar-se de várias formas, mas as características clínicas primárias são acidose metabólica, alterações no ECG e rabdomiólise.
A situação é incomum. Não há teste diagnóstico ou antídoto, e o tratamento é de suporte, por isso deve ser mantido um alto índice de suspeita em qualquer paciente, mas principalmente naqueles que recebem uma dose alta ou uma infusão prolongada, ou aqueles com fatores de risco específicos para o desenvolvimento de PRIS. As doses devem ser limitadas a 4 mg/kg/h em todos os casos.
REFERÊNCIAS
- World Health The selection and use of essential medicines: twentieth report of the WHO Expert Committee 2015 (including 19th WHO Model List of Essential Medicines and 5th WHO Model List of Essential Medicines for Children). https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/189763/9789241209946_eng.pdf?sequence 1. Accessed December 3, 2019.
- Parke TJ, Stevens JE, Rice ASC, et al. Metabolic acidosis and fatal myocardial failure after propofol infusion in children: five case reports. Br Med J. 1992;305:613-616.
- Bray Propofol infusion syndrome in children. Paediatr Anaesth. 1998;8:491-499.
- Fudickar A, Bein B. Propofol infusion syndrome: update of clinical manifestation and pathophysiology. Minerva Anesth. 2009;75:339-344.
- Hemphill S, McMenamin L, Bellamy MC, et al. Propofol infusion syndrome: a structured literature review and analysis of published case reports. Br J Anaesth. 2019;122(4):448-459.
- Roberts R, Barletta J, Fong J, et al. Incidence of propofol-related infusion syndrome in critically ill adults: a prospective, multicenter study. Crit Care. 2009;13(5):R169.
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- Medicines and Healthcare Products Regulatory Agency. Summary of product characteristics for propofol. http://www.gov.uk/spc-pil/?subsName PROPOFOL&pageID SecondLevel. Accessed December 18, 2019.
- Fodale V, La Monaca Propofol infusion syndrome: an overview of a perplexing disease. Drug Saf. 2008;31:293-303.