You are not connected to the internet and now in offline mode. Only pages or articles you visited while connected will be available.

Get notified when a new tutorial is published!

General Topics

Tutorial 377

Anestesia para transplante hepático ortotópico

Ranjit Deshpande1 e Ryan M. Chadha2

1 Professor Assistente, Diretor de Anestesiologia de Transplante
Yale-New Haven Hospital. New Haven, CT, USA.
2 Professor Assistente de Anestesiologia, Mayo Clinic, Jacksonville, FL, USA.

Editado por
M. A. Doane MD1 e Clara Poon2
1 Consultor em Anestesiologia, Royal North Shore Hospital, Sydney, Australia.
2 Consultor em Anestesiologia, Queen Mary Hospital, Hong Kong.

Contato: ranjit.deshpande@yale.edu

17 de abril de 2018

Pontos-chave

  • A compreensão da fisiopatologia complexa, comorbidades e complicações multiorgânicas de pacientes com doença hepática terminal é fundamental para o sucesso do procedimento.
  • Cada fase do transplante hepático apresenta os seus próprios desafios.
  • Atenção e capacidade de previsão são fundamentais para prevenir eventos críticos durante a cirurgia.
  • As coagulopatias são complexas; a tromboelastografia é uma ferramenta muito útil.
  • O planejamento multidisciplinar, preparação e otimização pré-operatórios são indispensáveis para o sucesso.

INTRODUÇÃO

O transplante de fígado ortotópico é o tratamento de escolha para pacientes elegíveis com doença hepática terminal. Nos EUA, a cirrose alcoólica é a etiologia mais comum da doença hepática terminal, ao passo que a hepatite viral (hepatite C, seguido de B) é a mais frequente indicação para o transplante. As outras indicações incluem tumores hepáticos, cirrose biliar primária, colangite esclerosante primária, determinadas doenças vasculares e metabólicas, e insuficiência hepática aguda (a qual é mais comumente causada por toxicidade de acetaminofeno/paracetamol). As etiologias predominantes da cirrose variam conforme a região geográfica.

Como há um número limitado de órgãos disponíveis para transplante, os enxertos de doadores falecidos são alocados a pacientes com base no seu risco de morte dentro de 3 meses (Figura 1). O risco pode ser quantificado com a escala MELD (modelo para doença hepática terminal) que vai de 6 a 40, e é calculado a partir do INR (índice internacional normalizado) e dos níveis séricos de bilirrubina e creatinina. A escala MELD foi depois modificada para incluir o nível de hiponatremia, aumentando o valor prognóstico em relação à escala MELD anterior. Pontos de exceção são dados a pacientes com carcinoma hepatocelular e hipertensão porto-pulmonar. Para um desfecho bom, os pacientes com essas doenças requerem transplante antes de perder a função hepática. A modificação nos critérios para esse subgrupo aumenta a chance de receber um transplante em tempo hábil, apesar do mais baixo escore MELD padrão.

Figura 1:

Figura 1: Relação entre o escore MELD e a mortalidade aos 3 meses (Wiesner RH, McDiarmid SV, Kamath PS et al. MELD and PELD: Application of survival models to liver allocation. Liver Transplant. 2001).

CONSIDERAÇÕES PRE-OPERATÓRIAS

Pacientes com doença hepática terminal tem uma fisiopatologia complexa de múltiplos órgãos, com muitas implicações para o anestesista. A meta primária da avaliação pré-transplante é estabelecer a possibilidade de o paciente resistir ao estresse da cirurgia, uma tarefa que requer uma abordagem multidisciplinar (anestesistas, cirurgiões, intensivistas, hepatologistas, etc.). A extensão e importância do planejamento, coordenação e cooperação multidisciplinares (pré, intra e pós-operatório) é um dos fatores que torna tão especial e complexo o manejo do transplante hepático. Assim, é essencial usar uma abordagem sistêmica na avaliação pré-operatória desses pacientes.

Aspectos neurológicos

Muitos pacientes com cirrose podem apresentar encefalopatia hepática. O mecanismo exato é desconhecido, mas acredita-se que seja relacionado aos elevados níveis de amônia colocada em circulação sistêmica pelo fígado disfuncional e descompensado. A presença de infecção, sangramento gastrointestinal e/ou hiponatremia pode exacerbar a encefalopatia. As flutuações na consciência e cognição do paciente podem ser avaliadas e monitoradas com os critérios de West Haven (Figura 2). Casos graves de insuficiência hepática aguda podem apresentar edema cerebral significante, o qual deve ser incluído como parte do manejo perioperatório.

Figura 2:

Figura 2: Critérios West Haven para a classificação de encefalopatia hepática (Hepatic Encephalopathy-Definition, nomenclature, diagnosis, and quantification: Final report of the Working Party at the 11th World Congresses of Gastroenterology, Vienna, 1998)

Aspectos hematológicos

Pacientes cirróticos geralmente tem distúrbios de coagulação. O aumento do sangramento é causado por uma deficiência quantitativa de fatores de coagulação, além de trombocitopenia e disfibrinogenemia. O aumento concomitante do fator de Von Willebrand e fator VIII, e a redução nos níveis de proteína C e proteína S, também contribuem para o estado hipercoagulável. Devido aos distúrbios complexos de coagulação, a tromboelastografia (TEG) ou a tromboelastometria (ROTEM) são ferramentas valiosas de uso imediato no manejo da ressuscitação hemostática e na estabilização de pacientes de transplante hepático. Nos centros que utilizam essas tecnologias, os profissionais devem ter um bom conhecimento prático sobre o seu uso e interpretação.

Acredita-se que a trombocitopenia comumente observada em pacientes com doença hepática terminal seja secundária ao hiperesplenismo e consumo de plaquetas por meio de coagulação intravascular. As plaquetas que permanecem em circulação são frequentemente disfuncionais devido a defeitos na transdução de sinais e defeitos intrínsecos de trombina e adenosina difosfato (ADP).

Apesar de parecer contra intuitivo, não se recomenda fazer transfusão de plaquetas para a correção pré-operatória da trombocitopenia uma vez que as plaquetas transfundidas também serão sequestradas no baço do paciente, ou seja, o procedimento será pouco eficaz e aumentará o risco de eventos trombóticos. Mais adiante falaremos sobre transfusão no pós-operatório imediato.

Deve ser lembrado que a combinação dos distúrbios de coagulação e trombocitopenia aumenta o risco de sangramento e trombose.

Aspectos cardíacos

As alterações cardiovasculares da cirrose são semelhantes às da sepse: taquicardia, débito cardíaco aumentado, baixa pressão arterial média e baixa resistência vascular sistêmica. Estas alterações fisiológicas resultam do aumento da produção (ou diminuição da eliminação hepática) de substâncias vasodilatadoras tais como óxido nítrico e canabinóides endógenos. A hipertensão portal observada na cirrose acaba levando a desvios porto-sistêmicos e uma circulação hiperdinâmica, aumentando a capacitância venosa. Uma vez que as complicações cardíacas representam uma grande proporção da morbidade perioperatória no transplante hepático, a maioria dos centros conduz testes de estresse cardíaco de rotina em pacientes com >2 fatores de risco cardíaco.

Pacientes cirróticos podem também evoluir com hipertensão porto-pulmonar, caracterizada por uma pressão arterial pulmonar média acima de 25 mmHg e uma resistência vascular pulmonar de >240 dyn*s/cm5 em repouso. Ecocardiografia pré-operatória é essencial na avaliação da disfunção miocárdica e no rastreamento para hipertensão pulmonar. Em pacientes com hipertensão pulmonar confirmada (ou altamente provável), toda anormalidade deve ser avaliada com um teste de estresse nuclear ou cateterismo cardíaco direito. Este último é o método primário para diferenciar a hipertensão venosa pulmonar (um problema comum e sem valor prognóstico) da hipertensão porto-pulmonar.

Devido à alta morbidade associada com transplante hepático em pacientes com hipertensão porto-pulmonar, pacientes com hipertensão pulmonar confirmada devem ser examinados e deve-se considerar todas as possibilidades de otimização, seguido de uma segunda avaliação de adequação ao transplante hepático ortotópico (THO) (Figura 3).

Figura 3.

Figura 3. Atuais diretrizes intraoperatórias da Mayo Clinic sobre hemodinâmica pulmonar em pacientes com hipertensão portopulmonar (Runo, J. “Liver Transplantation for Portopulmonary Hypertension” Clinical Liver Disease, September 2014)

Aspectos pulmonares

Em pacientes cirróticos, o acúmulo de ascite pode causar um aumento na pressão diafragmática e doença pulmonar restritiva. Pacientes com ascite excessiva podem também evoluir com hidrotórax hepático (mais comumente do lado direito).

A síndrome hepatopulmonar deve ser suspeitada em pacientes com hipoxemia (PaO2 <60 mmHg), mas sem indícios de doença cardíaca. Pacientes com síndrome hepatopulmonar tendem a apresentar um nível significante de dilatação vascular intrapulmonar, com shunt tardio (diagnosticado com ecocardiografia), resultando em um amplo gradiente de oxigênio alveolar-arterial (>15-20 mmHg) e platipneia (dispneia na posição ortostática, aliviada com decúbito). A única terapia definitiva para a síndrome hepatopulmonar é o transplante hepático. Porém, a presença da síndrome hepatopulmonar reduz a reserva pulmonar e aumenta a morbidade perioperatória.

Aspectos vasculares

A maioria dos pacientes cirróticos tem pelo menos um componente de hipertensão portal, definida como um gradiente portal venoso hepático de >5 mmHg. Isso acontece por causa do aumento da resistência vascular intra-hepática e do fluxo do sangue portal venoso, o qual aumenta o gradiente de pressão entre a veia portal e a veia hepática. Pode ocorrer uma colateralização através de varizes para aliviar a pressão. Mas, com a progressiva piora da hipertensão portal, o fígado começa a produzir vasodilatadores endógenos em excesso, causando vasodilatação esplâncnica e fluxo portal aumentado, além de exacerbar a hipertensão portal.

Aspectos renais

Pacientes com cirrose avançada muitas vezes apresentam hiponatremia hipovolêmica significante. A hiponatremia é secundária ao aumento da secreção de hormônio antidiurético (ADH) e faz piorar a ascite e o edema. Ou então, os pacientes podem vir a ter hiponatremia hipovolêmica secundária à poliúria. Com o avanço da cirrose, uma redução da resistência vascular sistêmica pode levar à ativação compensatória do sistema renina-angiotensina e, por fim, hipoperfusão renal. Esta, por sua vez, pode levar à síndrome hepato-renal (Figura 4).

Figura 4.

Figura 4. Componentes diagnósticos da síndrome hepato-renal.

Ao contrário dos pacientes com azotemia pré-renal, os pacientes com síndrome hepato-renal não respondem à reposição hídrica de 1.5 L. A única terapia definitiva para a síndrome hepato-renal é o transplante hepático.

CONSIDERAÇÕES INTRAOPERATÓRIAS

O manejo intraoperatório de pacientes recebendo transplante de fígado é dos mais complexos para o anestesista. A fisiologia altamente alterada e os rápidos distúrbios hemodinâmicos durante a cirurgia requerem uma abordagem intraoperatória cuidadosamente planejada e colaborativa.

Equipamento e monitorização

  • A monitorização é feita com monitores ASA padrão, ECG de 5 eletrodos, oximetria de pulso, pressão sanguínea não-invasiva, e monitorização de temperatura.
  • Pressão sanguínea arterial invasiva: Muitos centros usam linhas arteriais em 2 locais (2 radiais, ou 1 radial e 1 femoral) devido à necessidade de coleta frequente de sangue e monitorização hemodinâmica constante.
  • Cateter venoso central: Esse acesso é essencial para monitorar as pressões do átrio direito e para administrar vasopressores e inotrópicos.
  • Cateter arterial pulmonar: O uso varia de um centro para outro, mas muitos o consideram indispensável no manejo da hipertensão porto-pulmonar.
  • Acesso venoso: Grandes e rápidas perdas de volume requerem um acesso venoso viável. O método preferido (introdução de introdutores, acesso periférico de diâmetro grande, cateter de infusão rápida etc.) varia de um centro para outro. Deve-se ter cuidado para garantir a disponibilidade de mais de um ponto de acesso, e não usar acessos abaixo do diafragma (acesso femoral/extremidade inferior) porque as vias envolvendo a veia cava inferior podem estar clampeadas ou apresentar fontes de sangramento.
  • Ecocardiografia transesofágica: Cada vez mais usada na avaliação da função miocárdica, adequação das reconstruções da veia cava inferior, e status de volume.

  • Aquecedores: É essencial dispor de várias modalidades de manejo de temperatura, usando diversos aquecedores para prevenir a hipotermia.
  • Tromboelastografia (TEG): Devido aos sérios distúrbios de coagulação, com amplas flutuações durante a cirurgia, a TEG é uma excelente ferramenta para orientar a reposição de fatores e produtos sanguíneos.
  • Transfusão rápida: Devido à grande perda de sangue nessas cirurgias, os dispositivos de transfusão rápida são muito importantes, devendo ser usados como cuidado padrão.
  • Recuperação intraoperatória de hemácias: O grande volume de sangue perdido cria um ambiente ideal para recuperação intraoperatória de células. O uso dessa técnica também ajuda a tratar parte da hipercalemia associada com a transfusão de sangue. Existe um crescente consenso sobre a utilidade da recuperação de células e transfusão, até em casos de carcinoma hepatocelular.
  • EEG processado: Essa modalidade pode ser útil durante o transplante hepático, mas, devido à atividade cerebral geral (EEG) mais lenta em pacientes com encefalopatia, serão necessários mais estudos antes que se possa recomendar o seu uso de rotina.

Indução

Pacientes com ascite, ingestão alimentar recente ou suspeita de gastroparesia devem ser considerados para indução de sequência rápida. Devido à doença pulmonar restritiva comumente encontrada em pacientes cirróticos, deve-se esperar uma redução significante na capacidade de reserva funcional (FRC) e um tempo mais curto para dessaturação. Farmacologicamente, os pacientes com doença hepática terminal têm maiores volumes de distribuição, porém níveis mais baixos de proteína sérica, extração hepática e excreção renal. Juntas, essas alterações fisiológicas tornam imprevisível a farmacocinética da maioria dos anestésicos.

As fases da cirurgia

O transplante hepático é dividido em três fases intraoperatórios: a fase da dissecção (quando o cirurgião faz a incisão, drena a ascite e prepara a retirada do fígado disfuncional), a fase anepática (após clampear os vasos ligando o fígado e explantar o fígado) e a fase de reperfusão (conclusão da anastomose da veia portal e a perfusão do fígado transplantado). Cada uma dessas fases é descrita abaixo em maior detalhe.

Fase da dissecção

Esta fase começa com a incisão e termina com o clampeamento dos vasos hepáticos (a artéria hepática, as veias portais e as veias cavas inferiores supra-hepática e infra-hepática). Em pacientes com muita ascite, a remoção desta pode resultar em hipotensão significante, com necessidade de ressuscitação agressiva com fluidos. O volume pode ser expandido com cristaloides, albumina e produtos sanguíneos. Deve-se evitar cristaloides que requeiram metabolismo hepático, tais como soluções de ringer com lactato. Soluções contendo potássio também não são uma boa opção em pacientes com hipercalemia.

Durante a fase da dissecção, o foco anestésico deve estar na manutenção da estabilidade hemodinâmica, tratando a coagulopatia e manejando os eletrólitos em preparação para a fase anepática. Antes da remoção do fígado nativo, o paciente deve ser otimizado hemodinamicamente para poder tolerar o nível de clampeamento necessário para a hepatectomia total (isso depende da técnica usada para re-anastomosar a veia cava inferior).

A técnica padrão de clampear a veia cava inferior (IVC) resulta em uma grande perda de pré-carga, seguida de hipotensão. A otimização dessa técnica de clampeamento requer o carregamento do volume, a administração de drogas vasoativas e a correção da hipocalcemia. Se o paciente não tolerar o clampeamento da IVC, pode-se usar uma técnica “piggy-back” (Figuras 5a e 5b) ou bypass veno-venoso (Figura 6). Ambas ajudam a preservar a pré-carga durante a hepatectomia.

Figura 5a.

Figura 5a. Local e efeito de clampeamento “piggy-back” em cirurgia de transplante hepático.

Figura 5b.

Figura 5b. Variações anastomóticas comuns em transplantes hepáticos. (a): Anastomose bicaval com técnica convencional. (b): Técnica “Piggy-back” com preservação da cava retro-hepática e anastomose com o coto da veia hepática.

anepática

Em termos cirúrgicos, a fase anepática envolve a retirada do fígado nativo e a anastomose do enxerto transplantado antes do desclampeamento dos vasos e da reperfusão.

Nessa fase, o paciente (especialmente quando se usa uma técnica convencional ou “piggy-back” de anastomose) está essencialmente hipovolêmico porque o retorno venoso pela IVC está parcialmente ou totalmente bloqueado. Pode haver necessidade de ressuscitação de volume, mas o manejo usualmente envolve manter a hemodinâmica com vasopressores e inotrópicos (p.ex. norepinefrina). Se tratar a hipotensão com ressuscitação de excesso de líquido nessa fase, o paciente geralmente ficará fortemente hipervolêmico quando o novo fígado for perfundido e o retorno venoso for restabelecido. Essa hipervolemia não só prejudica a função cardiopulmonar, mas pode também causar uma congestão no fígado transplantado.

Figura 6.

Figura 6. Bypass veno-venoso padrão para transplante hepático.

Depois de clampeados todos os vasos, toda função hepática cessa. Enquanto funcionalmente anepático, o paciente sofrerá uma piora de acidose e hipocalcemia (por falta de metabolismo de citrato e lactato). A acidemia e a anúria pioram o quadro de hipercalemia, a qual deve ser tratada agressivamente em preparação para a perfusão hepática.

A hipercalemia e a acidose podem aparecer cedo. Para reduzir a carga de potássio pode-se recorrer a diuréticos, terapia de reposição renal contínua, minimização de transfusões de sangue e lavagem de produtos sanguíneos em dispositivos de recuperação celular. Quando estiver mais próximo o momento da reperfusão do fígado transplantado, a hipercalemia transitória pode ainda ser tratada com infusões de insulina, glicose e bicarbonato. Acidose aguda pode ainda ser estabilizada com hiperventilação.

As coagulopatias pré-existentes pioram progressivamente conforme a duração do período anepático, especialmente na presença dos distúrbios fisiológicos da acidose, hipotermia e desequilíbrios de eletrólitos.

As anastomoses vasculares do fígado transplantado são o último passo da fase anepática. Usualmente, conecta-se os vasos na seguinte sequência temporal: veia cava inferior supra-hepática, veia cava inferior infra-hepática, veia portal, artéria hepática, e ducto biliar.

Fase de reperfusão

Antes da reperfusão do enxerto, a IVC é desclampeada, restaurando assim a pré-carga ao coração. A reperfusão do fígado transplantado começa quando a veia portal é desclampeada. Nesse ato, o sangue dessaturado da circulação portal obstruída, mediadores inflamatórios (p.ex. IL-6, TNF-alpha, potássio, prótons, fluidos/componentes frios intra-hepáticos) e uma quantidade variável de material embólico entram rapidamente na circulação do paciente. Esses componentes isquêmicos frequentemente causam instabilidade hemodinâmica, com um súbito aumento da pressão sanguínea, taxa cardíaca, resistência vascular sistêmica e débito cardíaco. Essas alterações fisiológicas agudas podem rapidamente levar a uma piora da hipertensão pulmonar e à insuficiência cardíaca direita. Uma redução de 30% na pressão arterial média por mais de 1 minuto durante os primeiros 5 minutos após a reperfusão é definida como ‘síndrome pós-reperfusão’ (PRS). O risco de PRS aumenta proporcionalmente com o tempo de isquemia fria. Quanto à hipercalemia: aumentos rápidos no nível de potássio são comuns nessa fase e, em casos graves, podem facilmente provocar uma parada cardíaca. Deve haver disponibilidade de tratamento rápido para hipercalemia e deve-se observar atentamente quaisquer alterações no ECG nessa fase.

Para minimizar o risco de PRS, considere as seguintes medidas preventivas:

  1. Administração preventiva de cálcio para a correção da hipocalcemia.
  2. Infusão de bicarbonato de sódio ou tris(hidroximetil)aminometano (THAM) para o ajuste do pH.
  3. Administração de inotrópicos ou vasopressores como suporte circulatório.

Nesta fase é preciso uma boa comunicação com a equipe cirúrgica e muita atenção, sobretudo ao diagnóstico e tratamento rápido de arritmias (que podem evoluir para parada cardíaca) e hipotensão.

Fase neo-hepática

Após a reperfusão, deve-se finalizar as demais anastomoses vasculares, incluindo a artéria hepática e o ducto biliar. É importante verificar a imunossupressão, usualmente na forma de um bolus de esteroides. Varia de um centro para outro, mas costuma ser administrado no momento da reperfusão ou logo antes.

Na fase neo-hepática, o funcionamento do novo fígado pode variar. Por isso, durante o restabelecimento da função hepática, o anestesista deve monitorar atentamente e tratar adequadamente qualquer acidose, coagulopatia e distúrbios de temperatura. O passo final no implante é a anastomose do ducto biliar, após a qual o abdômen é fechado e o paciente é transferido para a UTI. Normalmente, a extubação é feita no começo da permanência na UTI, mas a prática varia de um centro para outro e depende sobretudo da estabilidade do paciente.

CONSIDERAÇÕES PÓS-OPERATÓRIAS

É importante estabelecer o funcionamento do fígado transplantado para orientar a recuperação do paciente e assegurar a aceitação fisiológica do transplante. Os sinais precoces de função de enxerto incluem um aumento da temperatura corporal devido ao aumento do metabolismo, hiperglicemia devido ao aumento da gliconeogênese, normalização da coagulopatia, a produção de bílis e eliminação de lactato. É comum o uso de ultrassom no intra- e pós-operatório para confirmar a viabilidade do fluxo hepático e portal.

O clínico deve estar atento para o aparecimento de complicações vasculares (venosas e arteriais) uma vez que podem comprometer a sobrevida do enxerto. Se o funcionamento do novo fígado for inadequado ou ausente, o paciente provavelmente irá precisar de transfusão de produtos sanguíneos e fatores de coagulação, correção da acidose com terapia de reposição renal e suporte com vasopressores.

A compreensão das alterações fisiológicas complexas e considerações anatômicas do transplante hepático é importante para o anestesista, independentemente de seu grau de envolvimento na cirurgia do transplante. As complexidades e nuances observadas no curto e intenso período do transplante hepático oferecem um excelente modelo para o estudo e entendimento da fisiologia hepática e dos distúrbios que podem ocorrer em diferentes contextos.

RESUMO

  • Pacientes com doença hepática terminal apresentam muitos distúrbios fisiológicos e metabólicos que precisam ser quantificados e otimizados no pré-operatório.
  • A avaliação cardíaca pré-operatória é fundamental para a estratificação de risco e otimização fisiológica.
  • O manejo anestésico de tais pacientes deve focar no potencial para rápidas flutuações na hemodinâmica, estado metabólico, status de coagulação e fisiologia no período perioperatório.
  • Uma boa comunicação com a equipe cirúrgica é necessária para prever e estabilizar alterações fisiológicas durante a cirurgia.

REFERÊNCIAS E LEITURA ADICIONAL

  1. Moitra V. Chapter 16: Liver Transplantation. Yao and Artusio’s Anesthesiology: Problem-Oriented Management Eighth Edition; 369-388
  2. Wagener G. Liver Anesthesiology and Critical Care Medicine. New York, NY: Springer New York; 2012.
Tutorial Outline