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Obstetric Anaesthesia

Tutorial 380

Recuperação sanguínea intraoperatória em obstetrícia

Drª Catherine Smith
Residente em Obstetrícia, BC Women’s Hospital, Canadá

Dr. William Shippam
Anestesista obstétrico, BC Women’s Hospital, Canadá

Editado por
Dr. James Brown1 e Drª Gillian Abir2
1 Anestesista obstétrico, BC Women’s Hospital, Canadá
2 Professor Clínico Associado, Stanford University, USA

Endereço de e-mail: atotw@wordpress-1154955-4022140.cloudwaysapps.com

29 de maio de 2018

Pontos-chave

  • A recuperação sanguínea intraoperatória (RIS) é provavelmente custo-efetiva para mulheres grávidas com fatores de risco para hemorragia pós-parto.
  • A RIS não aumenta o risco de embolia amniótica, infecção ou coagulopatia.
  • A RIS é aceita por algumas Testemunhas de Jeová.
  • Em mulheres Rhesus-negativas, a dose necessária de imunoglobulina anti-D deve ser determinada com o teste de Kleihauer-Betke e administrada dentro de 72 horas.

Introdução

A hemorragia obstétrica é uma causa importante de morbimortalidade materna no mundo (1). A incidência e a gravidade de hemorragia pós-parto (HPP) estão aumentando: a taxa de HPP no Canadá subiu de 5,1% para 6,2% (um aumento de 22%) entre 2003 e 2010. No mesmo período, a incidência de HPP com necessidade de transfusão sanguínea subiu de 37 a 50,4 a cada 10.000 partos (um aumento de 37%) (1,2).

A recuperação sanguínea intraoperatória (RIS) oferece uma alternativa ou complemento à transfusão alogênica (proveniente de doador) em casos de hemorragia obstétrica maciça e é recomendada nas diretrizes da Associação de Anestesistas da Grã-Bretanha e Irlanda (AABGI), da Associação dos Anestesistas Obstétricos (OAA) e do Instituto Nacional de Saúde e Excelência Clínica (NICE) do Reino Unido (3,4). O ensaio randomizado e controlado do grupo SALVO constatou que o uso rotineiro de RIS durante o parto cesariano não alterou significativamente a taxa de transfusão de sangue no pós-operatório, e a recuperação clínica foi semelhante (5). Porém, em estudos em que em que houve maior recuperação de sangue pela RIS (360 mL vs. 260 mL), apesar da amostra pequena e não-randomizada, a taxa pós-operatória de hemoglobina foi maior e a permanência hospitalar foi menor (5,6). Isso sugere que a RIS pode ser mais benéfica em mulheres com fatores de risco para HPP durante o parto cesariano. Em obstetrícia, a RIS mostrou ser segura, benéfica e custo-efetiva (5,7).

O presente tutorial aborda as indicações, contraindicações, vantagens, desvantagens, riscos e fundamentos da RIS em obstetrícia.

Indicações para a recuperação sanguínea intraoperatória

As indicações para RIS podem ser liberais ou restritivas, mas devem incluir mulheres com risco de HPP durante o parto cesariano. A AAGBI, o Colégio Real de Obstetras e Ginecologistas e a NICE definem isso como uma perda sanguínea estimada (PSE) acima de 1.000 mL (3,4). A RIS é mais custo-efetiva quando há grande probabilidade de transfusão de hemácias, p.ex. uma cesariana de repetição no contexto de uma placenta prévia diagnosticada, anemia pré-operatória grave ou implantação anormal da placenta diagnosticada (8). Mulheres com PSE abaixo de 1.000 mL podem também se beneficiar com RIS, porém em grau menor (5,6). A Tabela 1 mostra exemplos de quando se deve considerar usar RIS, mas o uso depende de protocolos e recursos locais. A gravidade da HPP pode ser difícil de prever, mas o benefício potencial da RIS é proporcional ao número de fatores de risco.

Tabela 1:

Tabela 1: Indicações obstétricas e médicas para recuperação intraoperatória de sangue durante o parto cesariano. HPP=hemorragia pós-parto; TJ=Testemunhas de Jeová.

Contraindicações para a recuperação sanguínea intraoperatória

  • Contaminantes biológicos
    • Fezes (obs: urina e líquido amniótico são seguros)
  • Contaminantes médicos
    • Agentes hemostáticos (Gelfoam™, Avitene™, Surgicel™, Floseal™ etc.)
    • Medicação inapropriada para administração intravenosa
  • História de plaquetopenia induzida por heparina (9)
  • Malignidade
  • Anemia falciforme (AF) homozigótica

A reinfusão de sangue recuperado em pacientes com malignidade oferece um risco teórico de disseminação de células malignas, incluindo neoplasias trofoblásticas gestacionais. A RIS foi usada com segurança em pacientes com malignidade urológica, mas não há informação suficiente sobre a segurança em obstetrícia e com outros tipos de malignidade (10).

A RIS não é recomendada em mulheres com AF homozigótica porque as condições de hipóxia no reservatório coletor podem induzir a lise de até 50% dos eritrócitos coletados (11). Em situações que oferecem risco de vida, a RIS pode ser usada em pacientes heterozigóticos. Se uma paciente com AF precisar de RIS, antes de proceder com a reinfusão deve-se preparar com urgência um esfregaço do sangue coletado e determinar o grau de lise (7,11).

 

Vantagens e desvantagens da recuperação sanguínea intraoperatória

Vantagens

  • Sem risco de reações de transfusão alogênica ou infecções transmitidas pelo sangue
  • Evita os efeitos imuno-moduladores da transfusão alogênica e infecções hospitalares associadas (12)
  • Disponibilidade imediata de sangue
  • Prova cruzada positiva na presença de anticorpos
  • É aceita por algumas Testemunhas de Jeová
  • É seguro administrar junto com medicação (p.ex. uterotônicos e ácido tranexâmico)
  • O sangue recuperado é mais fisiológico que o sangue armazenado (veja Tabela 2 abaixo)
    • Os níveis de temperatura, bifosfoglicerato, pH e potássio são mais próximos aos valores maternos (7,13,14).
Tabela 2:

Tabela 2: Comparação de sangue recuperado com hemácias doadas. RIS=recuperação intraoperatória de sangue. * Uma lavagem adequada deixará apenas vestígios de heparina (<10 unidades) no sangue reinfundido (16).

Desvantagens

  • Custo do equipamento de RIS e dos insumos
  • Custo do treinamento
  • O tempo de montagem pode limitar sua utilidade em partos cesarianos de emergência
  • O volume de sangue recuperado pode ser insuficiente, sendo necessário complementar com sangue alogênico.

Os custos podem ser reduzidos se o circuito de recuperação for montado somente quando indicado e se o circuito de reinfusão for usado somente em caso de necessidade.

Riscos da recuperação intraoperatória de sangue

No passado, houve preocupação com o uso da RIS em mulheres grávidas devido ao risco teórico de embolia amniótica. Considerava-se a embolia amniótica um processo embólico das células escamosas fetais, mas hoje é vista como uma reação anafilática a antígenos fetais. O nível de células escamosas fetais é o mesmo no sangue recuperado e no sangue materno normal no momento da separação placentária (13). Não existem casos relatados de embolia amniótica atribuída ao uso de RIS em obstetrícia (5,7,13).

A aloimunização ocorre quando uma mulher Rhesus-negativa cria anticorpos ao antígeno D presente em eritrócitos fetais Rhesus-positivos. Toda mãe é exposta a células fetais durante o parto. A carga de células fetais deve ser quantificada com um teste Kleihauer-Betke para determinar a dose de imunoglobulina anti-D a ser administrada à mãe nas primeiras 72 horas após o parto.

Os demais riscos da RIS são semelhantes aos riscos em outras populações cirúrgicas (10), tal como hipotensão devida ao uso de filtros de depleção de leucócitos e o risco de contaminação bacteriana. A hipotensão associada a filtros de depleção de leucócitos é rara e, acredita-se, é causada pela liberação de citocinas pelos leucócitos filtrados. Há relatos de hipotensão resolvida com a suspensão da reinfusão (13). A contaminação bacteriana pós-lavagem de amostras filtradas e não-filtradas é mínima (14); quando é feita profilaxia com antibióticos não parece haver um aumento na taxa de morbidade infecciosa associada à RIS (15).

O circuito de recuperação de sangue

O circuito de RIS inclui um reservatório coletor, um processador e um catéter de reinfusão (Figura 1). O coletor pode ser montado separadamente do circuito de reinfusão.

Figura 1:

Figura 1: recuperação intraoperatória de sangue (reproduzido com permissão da UK Cell Salvage Action Group). 1) As hemácias são coletadas do campo cirúrgico e/ou de gases com sangue. 2) O sangue é heparinizado, filtrado e lavado com soro antes de ser transferido para o reservatório. 3) Se o volume coletado for o suficiente, o sangue é processado por centrifugação diferencial, suspenso em soro, e reinfundido.

O sangue é coletado no campo cirúrgico através de um sistema de sucção com diâmetro grande e baixa pressão para minimizar danos às células. Pode-se usar uma segunda sucção antes da separação placentária para reduzir a contaminação por líquido amniótico e mecônio. Gases cirúrgicas ensanguentadas podem ser lavadas cuidadosamente com soro isotônico em um recipiente esterilizado, seguido pelo processamento do líquido para um maior rendimento de hemácias. O sangue recuperado deve ser anticoagulado durante a coleta, usualmente com soro heparinizado (16).

A decisão de reinfundir o sangue é baseada na PSE, na hemoglobina pré-operatória e no quadro clínico. O volume de sangue mínimo para iniciar o processamento e reinfusão costuma ser 500 mL, mas depende do equipamento usado. A reinfusão deve ser feita até 4 horas após a coleta.

Caso decida proceder com a reinfusão, o sangue colhido deve ser processado por centrifugação diferencial. A separação é baseada na massa das partículas: são retidos os eritrócitos mais pesados, e são eliminados o plasma, os fatores de coagulação ativados, os complementos e as plaquetas. O sangue é então lavado, transferido para uma bolsa de reinfusão, e administrado à paciente por via intravenosa (16).

A maioria dos equipamentos de RIS usa um filtro padrão de 170-200 micrômetros. Também existem filtros de microagregados (40 micrômetros) e filtros de depleção de leucócitos. Os filtros são montados entre a bolsa de reinfusão e o paciente. O filtro de depleção de leucócitos liga material celular contendo DNA a um filtro de polietileno para melhorar a remoção de contaminantes bacterianos, malignos ou amnióticos. Teoricamente, os filtros de depleção de leucócitos diminuem a contaminação do sangue recuperado (ainda faltam ensaios clínicos), mas já foram associados a taxas mais altas de eventos adversos (5).

Resumo

A RIS é uma ferramenta segura e eficiente de manejo de perda intraoperatória significativa de sangue durante o parto cesariano. O seu uso é mais custo-efetivo e benéfico em mulheres grávidas com fatores de risco para HPP. O benefício não foi comprovado em mulheres com perda de sangue menor que 1.000 mL. Não há relatos de eventos adversos sérios relacionados ao uso da RIS em mulheres grávidas. A RIS evita os riscos da transfusão de sangue proveniente de doador e ajuda a preservar os estoques de sangue doado.

Referências e leitura adicional

  1. Knight M, Callaghan WM, Berg C et al. Trends in postpartum hemorrhage in high resource countries: a review and recommendations from the International Postpartum Hemorrhage Collaborative Group. BMC Pregnancy Childbirth 2009;9:55.
  2. Mehrabadi A, Liu S, Bartholomew S et al. Temporal Trends in Postpartum Hemorrhage and Severe Postpartum Hemorrhage in Canada From 2003 to 2010. J Obstet Gynaecol Can. 2014;36:21-33.
  3. The Association of Anaesthetists of Great Britain and Ireland, Obstetric Anaesthetists’ Association. Guideline for Obstetric Anaesthetic Services 2013. https://www.aagbi.org/sites/default/files/obstetric_anaesthetic_services_2013.pdf (accessed on 06/12/2017)
  4. National Institute for Health & Care Excellence. Guideline IPG144: Intraoperative blood cell salvage in obstetrics. http://www.nice.org.uk/guidance/ipg144 (accessed 26/11/2017)
  5. Khan, K, Moore P, Wilson M, et al. Cell Salvage and donor blood transfusion during caesarean section: A pragmatic, multicenter randomized controlled trail (SALVO). PLoS Med 14(12):e1002471. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1002471
  6. Rainaldi M, Tazzari P, Scagliarini G et al. Blood salvage during caesarean section. Br J Anaesth. 1998;80:195–8.
  7. Corfe J. Joint guideline on the management of intraoperative cell salvage in obstetrics. 2017. Norfolk and Norwich University Hospitals, Norwich, England. http://www.nnuh.nhs.uk/publication/download/cell-salvage-in-obstetrics-jcg0073-v2/ (accessed 10/11/2017).
  8. Albright C, Rouse D, Werner E. Cost savings of red cell salvage during caesarean delivery. Obstet Gynecol 2014;124:690-696.
  9. UK Cell Salvage Action Group. Technical factsheets and frequently asked questions (FAQ). https://www.transfusionguidelines.org/transfusion-practice/uk-cell-salvage-action-group/technical-factsheets-and-frequently-asked-questions-faq (accessed 10/11/2017)
  10. Kuppurao L, Wee M. Perioperative cell salvage. Cont Edu in Anaesth Crit Care Pain 2010;10:104-108.
  11. Brajtbord D, Johnson D, Ramsay M et al. Use of the cell saver in patients with sickle cell trait. Anesth 1989;70:878-879.
  12. Taylor RW, Manganaro L, O’Brien J et al. Impact of allogenic packed red blood cell transfusions on nosocomial infection rates in the critically ill patient. Crit Care Med. 2002;30:2249-2254.
  13. Goucher H, Wong C, Patel S et al. Cell salvage in obstetrics. Anesth Analg. 2015;121:465-468.
  14. Thomas D. Cell salvage in trauma. Trans Alt Trans Med. 2005;6:31-36.
  15. Allam J, Cox M, Yentis SM. Cell Salvage in obstetrics. Int J Obstet Anesth. 2008;17:37-45.
  16. Water J. Intraoperative blood recovery. 2013. ASAIO J. 2013;59:11-17.
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