Basic Sciences
INTRODUÇÃO
O sistema termorregulador dos indivíduos homeotérmicos é o responsável pelo controle da temperatura corporal fisiológica próxima a 37°C para manutenção das funções metabólicas. A hipotermia é definida como temperatura central menor que 36°C e desencadeia uma série de respostas compensatórias comportamentais e autonômicas para a preservação do calor. A resposta autonômica à hipotermia é caracterizada pelo controle vasomotor (vasoconstrição periférica para redução da perda cutânea de calor quando a temperatura corporal < 36,5°C), termogênese sem tremores (alteração no metabolismo celular observada em neonatos), termogênese com tremores (reflexo protetor ativado quando a temperatura corporal < 35,5°C).
Os tremores pós-anestésicos desencadeados pela hipotermia, shivering, são oscilações musculares involuntárias que aumentam a produção corporal de calor, a demanda de oxigênio e produção de dióxido de carbono. Os tremores apresentam padrão específico à eletromiografia (freqüência de 200Hz, 4-8 ciclos/minuto, padrão crescente-decrescente).
A incidência de shivering entre os pacientes na sala de recuperação pós-anestésica varia de 6,3 a 66%, sendo uma das consequências mais desagradáveis do período pós-operatório. Não há associação direta com aumento de morbidade, porém shivering pode agravar a dor pelo estiramento da ferida operatória, aumentar a pressão intraocular e intracraniana, dificultar a monitorização dos pacientes (interferência na cardioscopia e oximetria de pulso), influenciar o metabolismo de drogas e prolongar o tempo de internação hospitalar. Shivering é prejudicial principalmente para pacientes com comorbidade prévia caracterizada por maior índice de shunt, redução da reserva respiratória ou débito cardíaco fixo. Tremores intensos podem aumentar a demanda metabólica de oxigênio em até 600%, porém geralmente não é possível manter de forma sustentada a demanda de oxigênio além do dobro da basal. Dessa forma, a terapia com oxigênio suplementar é essencial.
Na primeira hora após a indução anestésica a temperatura corporal cai 0,5 a 1,5°C pela simples redistribuição do calor do centro para a periferia. Durante o ato anestésico, os pacientes apresentam alto risco de hipotermia moderada (queda de 1 a 3°C da temperatura central) pela combinação de exposição a ambiente frio e a drogas anestésicas capazes de alterar ou mesmo inibir a termorregulação.
Estudos indicam possíveis fatores de risco para os tremores pós-anestésicos: procedimentos cirúrgicos de longa duração, sexo masculino, ventilação espontânea, uso de anticolinérgicos, transfusão, estado físico alterado (ASA). Idosos apresentam alterações significativas na ativação e atuação do sistema termorregulador e, consequentemente, baixa incidência de shivering. A prevenção e tratamento da hipotermia e suas consequências é responsabilidade do anestesiologista.
SISTEMA TERMORREGULADOR
O conhecimento a respeito da complexidade do sistema de termorregulação composto por termorreceptores, vias aferentes, sistemas de integração dos estímulos térmicos e vias efetoras é necessário para a compreensão dos mecanismos compensatórios responsáveis pelo shivering.
- Termorreceptores e vias aferentes: O corpo humano possui termorreceptores na pele, vísceras e diversos níveis do neuroeixo. Receptores sensíveis ao frio são estimulados sob temperaturas de 25 a 30°C e conduzem o estímulo ao sistema nervoso central através de fibras Aδ, enquanto receptores sensíveis ao calor são estimulados em temperaturas de 45 a 50°C e inervados por fibras C. Os estímulos térmicos periféricos alcançam o hipotálamo através de múltiplas sinapses ao longo da medula espinhal (trato espinotalâmico lateral), tronco encefálico (núcleo da rafe) e locus subcoeruleus. Os neurônios termossensíveis serotoninérgicos e receptores α2 adrenérgicos localizados no núcleo da rafe e neurônios noradrenérgicos localizados no locus subcoeruleus são importantes locais de ação dos fármacos utilizados no tratamento do shivering.
- Integração dos estímulos térmicos: A região pré-óptica do hipotálamo anterior é consagrada como o principal centro de controle da termorregulação autonômica, responsável pela integração e interpretação dos estímulos provenientes dos termorreceptores. O hipotálamo posterior modula e inicia uma resposta compensatória adequada. Porém, essas áreas hipotalâmicas não correspondem a um núcleo específico somente para termorregulação. Elas são sensíveis a alterações de osmolalidade plasmática, glicemia, concentração de dióxido de carbono, pressão arterial, estímulos hormonais e emocionais (interação com sistema límbico e córtex) e nível de vigília. Portanto, pode existir relação entre esses fatores, como o nível de vigília (acordado x anestesia geral, ciclo circadiano) influenciando a sensibilidade (firing rate) dos neurônios da região pré-óptica do hipotálamo aos estímulos térmicos periféricos. Por isso, shivering pós-anestésico ocorre principalmente em pacientes hipotérmicos após o despertar da anestesia geral, quando a resposta compensatória à hipotermia é desencadeada após ser cessada a exposição aos agentes anestésicos hipnóticos e que inibem o sistema termorregulador.
- Vias efetoras: Diversos mecanismos auxiliam na manutenção da temperatura corporal frente à hipotermia: resposta comportamental, vasomotora e termogênese através do shivering, desencadeado apenas quando os demais são insuficientes. O estímulo hipotalâmico segue através do mesencéfalo (formação reticular), ponte e medula espinhal até alcançar os neurônios motores α, completando a via eferente do shivering.
TREMORES SHIVERING-LIKE
Pacientes normotérmicos podem apresentar tremor shivering-like (semelhates ao shivering) causado pela liberação intensa de catecolaminas desencadeada pela dor mal controlada, estresse cirúrgico ou pelo uso de anestésicos voláteis.
Halotano, enflurano e isoflurano alteram o limiar dos tremores, inibindo as respostas compensatórias do centro termorregulador. Por isso, entre outras alterações transitórias ao exame neurológico, tremores shivering-like podem ser observados durante o despertar da anestesia inalatória, pela desinibição do controle das vias motoras e reflexos espinhais, com respostas exacerbadas de atividade tônica-clônica.
MODULAÇÃO FARMACOLÓGICA DO SHIVERING
Todas as drogas utilizadas no tratamento do shivering reduzem a taxa corporal de produção de calor, por isso devem ser associadas obrigatoriamente a medidas ativas de aquecimento (cobertores, mantas térmicas, aquecimento do ambiente), que também reduzem o consumo de medicamentos.
Não existem receptores ou vias específicas responsáveis somente pela termorregulação. Receptores noradrenérgicos, serotoninérgicos, colinérgicos, α2-agonistas, antagonistas NMDA (N-metil D-aspartato) e agonistas opióide são possíveis sítios de ação dos fármacos utilizados para o tratamento do shivering. Diversas classes de drogas podem ser utilizadas. A maioria das drogas possui ação anti-shivering e analgésica, o que reforça a hipótese de importante interação entre o sistema antinociceptivo e termorregulador. Porém, a farmacodinâmica exata dessas medicações e o tratamento padrão-ouro do shivering ainda não foram estabelecidos.
Medicações antishivering e seu provável mecanismo de ação:
- Opióides: atuação no hipotálamo, núcleo dorsal da rafe, locus coeruleus e medula espinhal. Atenção aos possíveis efeitos colaterais dose-dependente dos opióides.
- Meperidina (25mg ou 0,35mg/kg): droga mais utilizada para o tratamento antishivering pós-anestésico. Doses analgésicas de meperidina inibem a recaptação de 5HT e noradrenalina, o que reduz o limiar do shivering e da vasoconstrição periférica em maior proporção que doses eqüipotentes de outros opióides. Apresenta ação em receptores opióide μ e κ e ação como anestésico local. Possível agonista α2 adrenérgico no sistema nervoso central (SNC) e antagonista não competitivo dos receptores NMDA espinhais.
- Tramadol (35 a 220mg): inibição da recaptação de 5HT, noradrenalina e dopamina, au-mento da liberação de 5HT reduzindo o set point da temperatura corporal. Possível ago-nista α2.
- Outros: agonistas μ (morfina, fentanil, alfentanil). Utilizados em bloqueio epidural, po-dem reduzir o set point da temperatura corporal e o limiar do shivering.
- Clonidina (150mcg): agonista α2 adrenérgico. Ativação de receptores α2 na medula espinhal com liberação de dinorfina (opióide κ agonista), acetilcolina e noradrenalina, levando à redu-ção de estímulos nociceptivos no corno dorsal da medula. Aumento da condutância de potás-sio, levando à hiperpolarização celular com redução da termossensibilidade. Redução do in-fluxo de cálcio e da liberação de neurotransmissores com redução da firing rate dos neurônios localizados no locus coeruleus e núcleo dorsal da rafe.
- Cetamina: antagonista não competitivo dos receptores NMDA. Receptores NMDA provavel-mente influenciam no controle da temperatura corporal através da modulação de receptores noradrenérgicos e serotoninérgicos. Inibição de recaptação de aminas em vias inibitórias dador, ação anestésica local e agonista opióide κ.
- Cetanserin (10mg): anti-hipertensivo. Antagonista 5HT2 e α1 adrenérgico.
- Nefobam (6,5 a 11mg): analgésico não opióide capaz de tratar dor moderada a grave. Blo-queio de canais de sódio voltagem dependente e inibição de recaptação de 5HT, noradrenalina e dopamina, com redução discreta do set point da temperatura corporal.
- Fisostigmina (2 mg): inibidor da acetilcolinesterase. A efetividade da fisostigmina é comparável vel à meperidina e clonidina na prevenção do shivering pós-anestésico. Possível interação com receptores opióides α e α2 adrenérgicos e ações supraespinhais e espinhal nos interneurônios colinérgicos. Analgesia pela liberação de betaendorfinas, interação com vias de dor.
- Doxapram: agente analógico de baixa potência, usado como estimulante respiratório. Efe- tivo no tratamento antishivering, através de mecanismos ainda não utilizados.
Assim, em virtude da elevada incidência e possíveis implicações clínicas, o profissional deve estar atento para as medidas de prevenção e tratamento do shivering durante o ato anestésico e internação na sala de recuperação pós-anestésica.
REFERÊNCIAS
- De Witte J, Sessler DI. Perioperative shivering: Pathophysiology and Pharmacology. Anesthesiology 2002; 96: 467-84.
- SAESP – Tratado de anestesiologia 7a Edição Cangiani LM et al., 2011.
- Soares LF, Helayel PE, de Oliveira Filho GR, do Amaral R. Transient Neurological Changes During Emergence from Enflurane, Isoflurane or Sevoflurane Anesthesia. Revista Brasileira de Anestesiologia 2001; 51: 469- 73.