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Basic Sciences

Tutorial 69

SHIVERING PÓS-ANESTÉSICO

Dra. Maria Eduarda Dias Brinhosa, Hospital Governador Celso Ramos, Brasil
Contato para sba@sba.com.br

17 DE FEVEREIRO DE 2014

INTRODUÇÃO

O sistema termorregulador dos indivíduos homeotérmicos é o responsável pelo controle da temperatura corporal fisiológica próxima a 37°C para manutenção das funções metabólicas. A hipotermia é definida como temperatura central menor que 36°C e desencadeia uma série de respostas compensatórias comportamentais e autonômicas para a preservação do calor. A resposta autonômica à hipotermia é caracterizada pelo controle vasomotor (vasoconstrição periférica para redução da perda cutânea de calor quando a temperatura corporal < 36,5°C), termogênese sem tremores (alteração no metabolismo celular observada em neonatos), termogênese com tremores (reflexo protetor ativado quando a temperatura corporal < 35,5°C).

Os tremores pós-anestésicos desencadeados pela hipotermia, shivering, são oscilações musculares involuntárias que aumentam a produção corporal de calor, a demanda de oxigênio e produção de dióxido de carbono. Os tremores apresentam padrão específico à eletromiografia (freqüência de 200Hz, 4-8 ciclos/minuto, padrão crescente-decrescente).

A incidência de shivering entre os pacientes na sala de recuperação pós-anestésica varia de 6,3 a 66%, sendo uma das consequências mais desagradáveis do período pós-operatório. Não há associação direta com aumento de morbidade, porém shivering pode agravar a dor pelo estiramento da ferida operatória, aumentar a pressão intraocular e intracraniana, dificultar a monitorização dos pacientes (interferência na cardioscopia e oximetria de pulso), influenciar o metabolismo de drogas e prolongar o tempo de internação hospitalar. Shivering é prejudicial principalmente para pacientes com comorbidade prévia caracterizada por maior índice de shunt, redução da reserva respiratória ou débito cardíaco fixo. Tremores intensos podem aumentar a demanda metabólica de oxigênio em até 600%, porém geralmente não é possível manter de forma sustentada a demanda de oxigênio além do dobro da basal. Dessa forma, a terapia com oxigênio suplementar é essencial.

Na primeira hora após a indução anestésica a temperatura corporal cai 0,5 a 1,5°C pela simples redistribuição do calor do centro para a periferia. Durante o ato anestésico, os pacientes apresentam alto risco de hipotermia moderada (queda de 1 a 3°C da temperatura central) pela combinação de exposição a ambiente frio e a drogas anestésicas capazes de alterar ou mesmo inibir a termorregulação.

Estudos indicam possíveis fatores de risco para os tremores pós-anestésicos: procedimentos cirúrgicos de longa duração, sexo masculino, ventilação espontânea, uso de anticolinérgicos, transfusão, estado físico alterado (ASA). Idosos apresentam alterações significativas na ativação e atuação do sistema termorregulador e, consequentemente, baixa incidência de shivering. A prevenção e tratamento da hipotermia e suas consequências é responsabilidade do anestesiologista.

SISTEMA TERMORREGULADOR

O conhecimento a respeito da complexidade do sistema de termorregulação composto por termorreceptores, vias aferentes, sistemas de integração dos estímulos térmicos e vias efetoras é necessário para a compreensão dos mecanismos compensatórios responsáveis pelo shivering.

  1. Termorreceptores e vias aferentes: O corpo humano possui termorreceptores na pele, vísceras e diversos níveis do neuroeixo. Receptores sensíveis ao frio são estimulados sob temperaturas de 25 a 30°C e conduzem o estímulo ao sistema nervoso central através de fibras Aδ, enquanto receptores sensíveis ao calor são estimulados em temperaturas de 45 a 50°C e inervados por fibras C. Os estímulos térmicos periféricos alcançam o hipotálamo através de múltiplas sinapses ao longo da medula espinhal (trato espinotalâmico lateral), tronco encefálico (núcleo da rafe) e locus subcoeruleus. Os neurônios termossensíveis serotoninérgicos e receptores α2 adrenérgicos localizados no núcleo da rafe e neurônios noradrenérgicos localizados no locus subcoeruleus são importantes locais de ação dos fármacos utilizados no tratamento do shivering.
  2. Integração dos estímulos térmicos: A região pré-óptica do hipotálamo anterior é consagrada como o principal centro de controle da termorregulação autonômica, responsável pela integração e interpretação dos estímulos provenientes dos termorreceptores. O hipotálamo posterior modula e inicia uma resposta compensatória adequada. Porém, essas áreas hipotalâmicas não correspondem a um núcleo específico somente para termorregulação. Elas são sensíveis a alterações de osmolalidade plasmática, glicemia, concentração de dióxido de carbono, pressão arterial, estímulos hormonais e emocionais (interação com sistema límbico e córtex) e nível de vigília. Portanto, pode existir relação entre esses fatores, como o nível de vigília (acordado x anestesia geral, ciclo circadiano) influenciando a sensibilidade (firing rate) dos neurônios da região pré-óptica do hipotálamo aos estímulos térmicos periféricos. Por isso, shivering pós-anestésico ocorre principalmente em pacientes hipotérmicos após o despertar da anestesia geral, quando a resposta compensatória à hipotermia é desencadeada após ser cessada a exposição aos agentes anestésicos hipnóticos e que inibem o sistema termorregulador.
  3. Vias efetoras: Diversos mecanismos auxiliam na manutenção da temperatura corporal frente à hipotermia: resposta comportamental, vasomotora e termogênese através do shivering, desencadeado apenas quando os demais são insuficientes. O estímulo hipotalâmico segue através do mesencéfalo (formação reticular), ponte e medula espinhal até alcançar os neurônios motores α, completando a via eferente do shivering.
Tabela 1:

Tabela 1: Escala de graduação do shivering proposta por Crossley e Mahajan.

TREMORES SHIVERING-LIKE

Pacientes normotérmicos podem apresentar tremor shivering-like (semelhates ao shivering) causado pela liberação intensa de catecolaminas desencadeada pela dor mal controlada, estresse cirúrgico ou pelo uso de anestésicos voláteis.

Halotano, enflurano e isoflurano alteram o limiar dos tremores, inibindo as respostas compensatórias do centro termorregulador. Por isso, entre outras alterações transitórias ao exame neurológico, tremores shivering-like podem ser observados durante o despertar da anestesia inalatória, pela desinibição do controle das vias motoras e reflexos espinhais, com respostas exacerbadas de atividade tônica-clônica.

MODULAÇÃO FARMACOLÓGICA DO SHIVERING

Todas as drogas utilizadas no tratamento do shivering reduzem a taxa corporal de produção de calor, por isso devem ser associadas obrigatoriamente a medidas ativas de aquecimento (cobertores, mantas térmicas, aquecimento do ambiente), que também reduzem o consumo de medicamentos.

Não existem receptores ou vias específicas responsáveis somente pela termorregulação. Receptores noradrenérgicos, serotoninérgicos, colinérgicos, α2-agonistas, antagonistas NMDA (N-metil D-aspartato) e agonistas opióide são possíveis sítios de ação dos fármacos utilizados para o tratamento do shivering. Diversas classes de drogas podem ser utilizadas. A maioria das drogas possui ação anti-shivering e analgésica, o que reforça a hipótese de importante interação entre o sistema antinociceptivo e termorregulador. Porém, a farmacodinâmica exata dessas medicações e o tratamento padrão-ouro do shivering ainda não foram estabelecidos.

Medicações antishivering e seu provável mecanismo de ação:

  1. Opióides: atuação no hipotálamo, núcleo dorsal da rafe, locus coeruleus e medula espinhal. Atenção aos possíveis efeitos colaterais dose-dependente dos opióides.
    1. Meperidina (25mg ou 0,35mg/kg): droga mais utilizada para o tratamento antishivering pós-anestésico. Doses analgésicas de meperidina inibem a recaptação de 5HT e noradrenalina, o que reduz o limiar do shivering e da vasoconstrição periférica em maior proporção que doses eqüipotentes de outros opióides. Apresenta ação em receptores opióide μ e κ e ação como anestésico local. Possível agonista α2 adrenérgico no sistema nervoso central (SNC) e antagonista não competitivo dos receptores NMDA espinhais.
    2. Tramadol (35 a 220mg): inibição da recaptação de 5HT, noradrenalina e dopamina, au-mento da liberação de 5HT reduzindo o set point da temperatura corporal. Possível ago-nista α2.
    3. Outros: agonistas μ (morfina, fentanil, alfentanil). Utilizados em bloqueio epidural, po-dem reduzir o set point da temperatura corporal e o limiar do shivering.
  2. Clonidina (150mcg): agonista α2 adrenérgico. Ativação de receptores α2 na medula espinhal com liberação de dinorfina (opióide κ agonista), acetilcolina e noradrenalina, levando à redu-ção de estímulos nociceptivos no corno dorsal da medula. Aumento da condutância de potás-sio, levando à hiperpolarização celular com redução da termossensibilidade. Redução do in-fluxo de cálcio e da liberação de neurotransmissores com redução da firing rate dos neurônios localizados no locus coeruleus e núcleo dorsal da rafe.
  3. Cetamina: antagonista não competitivo dos receptores NMDA. Receptores NMDA provavel-mente influenciam no controle da temperatura corporal através da modulação de receptores noradrenérgicos e serotoninérgicos. Inibição de recaptação de aminas em vias inibitórias dador, ação anestésica local e agonista opióide κ.
  4. Cetanserin (10mg): anti-hipertensivo. Antagonista 5HT2 e α1 adrenérgico.
  5. Nefobam (6,5 a 11mg): analgésico não opióide capaz de tratar dor moderada a grave. Blo-queio de canais de sódio voltagem dependente e inibição de recaptação de 5HT, noradrenalina e dopamina, com redução discreta do set point da temperatura corporal.
  6. Fisostigmina (2 mg): inibidor da acetilcolinesterase. A efetividade da fisostigmina é comparável vel à meperidina e clonidina na prevenção do shivering pós-anestésico. Possível interação com receptores opióides α e α2 adrenérgicos e ações supraespinhais e espinhal nos interneurônios colinérgicos. Analgesia pela liberação de betaendorfinas, interação com vias de dor.
  7. Doxapram: agente analógico de baixa potência, usado como estimulante respiratório. Efe- tivo no tratamento antishivering, através de mecanismos ainda não utilizados.

Assim, em virtude da elevada incidência e possíveis implicações clínicas, o profissional deve estar atento para as medidas de prevenção e tratamento do shivering durante o ato anestésico e internação na sala de recuperação pós-anestésica.

REFERÊNCIAS

  1. De Witte J, Sessler DI. Perioperative shivering: Pathophysiology and Pharmacology. Anesthesiology 2002; 96: 467-84.
  2. SAESP – Tratado de anestesiologia 7a Edição Cangiani LM et al., 2011.
  3. Soares LF, Helayel PE, de Oliveira Filho GR, do Amaral R. Transient Neurological Changes During Emergence from Enflurane, Isoflurane or Sevoflurane Anesthesia. Revista Brasileira de Anestesiologia 2001; 51: 469- 73.
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